5.2.08

Senso de humor infernal

Marina Silva tem, como cidadã, o direito de professar a fé que bem desejar. Mais até, não é porque se tornou ministra de um Estado nominalmente laico que precisaria deixar de comparecer aos cultos de sua igreja, a Assembléia de Deus.

Ela, entretanto, avançou o sinal quando participou do 3º Simpósio sobre Criacionismo e Mídia, promovido pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo, e, à saída, ainda deu uma entrevista na qual, no melhor estilo dos "neocons" dos EUA, sustentou que visões de mundo criacionistas devem ser ensinadas nas escolas, para que os alunos possam decidir por si mesmos.

Estamos aqui diante de dois problemas. Em primeiro lugar, Marina deveria ter-se recusado a participar do evento, pela simples razão de que não foi convidada para falar na condição de simples fiel da Assembléia, ou teóloga, mas sim por ser ministra do Meio Ambiente, ou seja, uma representante do Estado. E, nos termos do artigo 19 da Constituição, é vedado ao Estado "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança". Essa, entretanto, é a falta menos grave, que seria facilmente perdoável, se a ministra não tivesse em suas declarações abraçado também a pedagogia ultraconservadora, que pretende transformar fatos comprováveis em comprovados em questões abertas a escrutínio religioso.

Não conheço as opiniões hidrostáticas do papa, mas não importa o que ele pense ou decrete acerca da fervura da água, o fato é e será que, em condições normais de temperatura e pressão, ela ferve a 100ºC.

De modo análogo, independentemente do discurso religioso, as bases gerais da teoria evolutiva mais ou menos como postulada por Charles Darwin no século 19 estão cabalmente comprovadas. Falácias criacionistas não vão mudar isso. O rol de evidências pró-Darwin é extenso. Vai da totalidade do registro fóssil até aqui coletado - e nunca falseado por nenhum despojo geologicamente impossível_ até a capacidade de fazer previsões sobre o futuro, como o surgimento de cepas de bactérias resistentes a novas classes de antibióticos.

O criacionismo em sua mais nova roupagem - o tal do design inteligente - sustenta que a evolução é "apenas" uma teoria e cheia de supostas dificuldades, como se tudo em ciência não fosse "apenas uma teoria", aí incluída a teoria da gravidade. Seu argumento básico é o de que seres vivos são complexos demais para ter surgido "por acaso": se eu encontro um relógio, a sutileza e a precisão das roldanas e engrenagens, me autoriza a supor um relojoeiro; de modo análogo a arquitetura de estruturas como asas e olhos permitiria inferir um Criador.

"Non sequitur", que, em bom português, significa: é pura bobagem, coisa de quem não entendeu (ou fingiu que não entendeu) o bê-á-bá do darwinismo. Embora mutações nos seres vivos de fato ocorram aleatoriamente, a seleção subseqüente - que conserva o que é útil e despreza o que não o é - nada tem a ver com acaso. Ela é, se quisermos, o avesso do acaso.

Trata-se, na verdade, de um dos poucos processos naturais que conseguem simular o trabalho de projetistas. Só que funciona ao contrário. Ao preservar traços mesmo que milimétricos de utilidade e descartar todas as mutações que não servem para nada (a maioria delas resulta em cânceres, é oportuno lembrar), a seleção consegue, ao longo de inúmeras gerações, produzir estruturas que passam por entidades concebidas por uma inteligência.

O que o criacionismo faz é, apoiando-se nessa ilusão, impingir raciocínios capengas que soarão convincentes a alunos com pouco treinamento epistemológico e já socialmente orientados a "aceitar a palavra de Deus". Admitir que padres e pastores profiram tais sandices em epistemológicas em seus templos é uma necessidade democrática. Mas não faz nenhum sentido repeti-las nas salas de aula de um Estado laico. Fatos sobre o mundo não são matéria que se decida com base em convicções pessoais ou maiorias.

E, infelizmente, os neocriacionistas não se contentam em acreditar em Deus. Querem, sabe-se lá por qual motivo, revestir seu delírio de vestes científicas. Só que estas não lhe cabem.

O grande erro da comunidade científica norte-americana foi ter esperado tempo demais antes de reagir às investidas criacionistas, deixando que o discurso pseudocientífico e aparentemente democrático prosperasse e ganhasse terreno. Infelizmente, nós, no Brasil, estamos repetindo esse equívoco. Vale lembrar que o pio casal Garotinho já introduziu o ensino do criacionismo nas escolas da rede pública do Rio de Janeiro. Consertar as coisas agora será um deus-nos-acuda.

Não deixa de ser irônico que os mesmos sociólogos, advogados e psicólogos que até há pouco se erigiam em defensores máximos das liberdades agora propugnem pela censura a pesquisas, e os mesmos religiosos criacionistas que poucos séculos atrás queimavam livros e pessoas agora recorram à liberdade de pensamento para apregoar tolices na escola pública. Não acredito em deuses, mas, é forçoso reconhecer que eles têm um senso de humor infernal.

trecho de Ciência sob ataque, texto de Hélio Schwartsman na Folha Online.

6 comentários:

Unknown disse...

É impressionante como este assunto suscita as mais apaixonadas defesas.
Infelizmente a paixão na grande maioria das vezes tira o foco da análise racional e equilibrada dos fatos.
Se no passado já foram cometidas atrocidades falsamente justificadas pelo uso indevido do nome de Deus, igualmente se quiz e se quer hoje desacreditar a Bíblia usando análises simplistas e unilaterais das descobertas da ciência. Que diga-se de passagem ainda tem muito a descobrir e esclarecer sobre como a vida surgiu e se desenvolveu na terra.
Análises desapaixonadas e cientificamente consistentes demonstram as dificuldades em explicar por exemplo o surgimento das complexas formas de vida em intervalos extremamente curtos, como os próprios registros fósseis demonstram.
A descrição bíblica da criação afirma que tudo que existe, foi criado através do comando de Deus. Ela não tem como objetivo datar a origem do universo ou mesmo detalhar como o processo se deu. Entretanto, quando a descrição da criação é confrontada com as descobertas científicas, fica demonstrada sua coerência e precisão na seqüência dos fatos registrados na natureza.
Uma reconhecida e respeitada associação científica americana, a Reasons to Beleave, vem ao longo de anos demonstrando em suas publicações e palestras a consistência do relato bíblico e sua coerência com as descobertas científicas geológicas, arqueológicas, genéticas, físicas, astronômicas, etc.
Se deixarmos as paixões de lado e nos focarmos nos fatos, limitações científicas e objetivos bíblicos, o aprendizado será proveitoso para todos.

Anônimo disse...

Nem sei o que falar, não sou boa em argumentações teológicas... Porém quero expressar minha revolta, tive a infeluicidade de ler esse texto na folha e fiquei indignada, esse cara é digno de pena! Quanta inteligência jogada no lixo...

Karin Stahlke disse...

leiam "Não tenho fé o suficiente para ser ateu" de NORMAN L. GEISLER e FRANK TUREX.
Na minha opinião, sem fé é impossível agradar a Deus! Deus permite isso tudo de propósito!
Seria mto fácil "saber" ao invés de "crer" q Deus existe, e q Ele fez o q fez. São pensamentos mto altos para nós, humanos, científicos, crentes, céticos, enfim. A ciência se renova, se desmente, a Verdade é Verdade sempre.

Anônimo disse...

Eu não entendo uma coisa: Porque o homem têm mania de se achar superior à Deus? Sabe, a palavra de Deus fala que "sem fé é impossível agradar a Deus". Até aí tudo bem. O grande problema é que o homem prefere mil vezes acreditar em si, no que vê porque é mais fácil. Hoje em dia não exercitamos mais a fé. O Edilson, graças ao bom Deus teve o conhecimento desse grupo respeitado nos EUA, que estão comparando os fatos bíblicos com os fatos científicos.
Outra coisa que fico observando é a incapacidade da inteligência do homem buscar mais fundamentos, ou então buscar saber se realmente Deus existe. Se todos os grandes cientistas fizerem isso, acho que eles não farão comentários e nem afirmações tão "pebas" - a nao ser que eles prefiram acreditar mais nos seus umbigos do que acreditar em Deus.
Mas em meio à tantas coisas, que creio que deixam Deus triste e a mim também, eu acabo achando engraçado uma coisa. O homem prefere ser parente, ou descendente de um macaco, do que ser filho de Deus.

Humberto R. de Oliveira Jr disse...

"Estamos aqui diante de dois problemas. Em primeiro lugar, Marina deveria ter-se recusado a participar do evento, pela simples razão de que não foi convidada para falar na condição de simples fiel da Assembléia, ou teóloga, mas sim por ser ministra do Meio Ambiente, ou seja, uma representante do Estado. E, nos termos do artigo 19 da Constituição, é vedado ao Estado "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança". Essa, entretanto, é a falta menos grave, que seria facilmente perdoável, se a ministra não tivesse em suas declarações abraçado também a pedagogia ultraconservadora, que pretende transformar fatos comprováveis em comprovados em questões abertas a escrutínio religioso."

Meu caro Sérgio e amigos,

Em terra de ignorantes e iletrados quem fala bonito e tece comentários num tom confiante convence uma pá de gente.

Esse camarada aí ou é muito dos “espertinhos” ou num entende nada de Direito. Vejamos por quê:

Ele parafraseia o Artigo 19 da CF, mas, ao fazer isso, ele manipula a Lei em seu favor. Reparemos no que diz realmente o Artigo referido:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

II - recusar fé aos documentos públicos;

III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.”

O texto legal está proibindo na verdade possíveis vínculos institucionais entre o Estado e Religião (seja qual for), a título de exemplificação: como outrora ocorreu no Brasil Imperial e na Europa Medieval, e como ainda ocorre nos países Árabes. Não houve nenhum vinculo institucional formado entre o Estado e a instituição promotora do evento do qual a Ministra participou. Ou ouve?...

Não há o menor problema de a Marina – enquanto individua, mesmo que na posição de Ministra – participar de tal evento. E também não há o menor problema no fato de ela ter apresentado seus posicionamentos pessoais a respeito de religião e ciência, uma vez que os cargos públicos não são ocupados por robôs, por indivíduos impessoais e passivos diante da vida; pelo contrário, quando apoiamos determinadas pessoas a fim de que estejam em cargos públicos, o fazemos devido ao fato de nos identificarmos com a linha de pensamento desses indivúduos. Isso é democracia!!!

Elegemos quem acreditamos que fará o que nós faríamos se lá estivéssemos!

A guerra aqui é ideológica, não está realmente no campo do que é ou não legal.

Se ele quer argumentar no campo das idéias e paixões envolvendo o tema fé e ciência, tudo bem! Não há problemas. Mas para argumentar no campo do Direito, ele deve reler o que já leu a respeito do assunto... se é que leu alguma coisa.

Thereza Christina Pereira Jorge disse...

Querido Sergio Pavarini,
Ler o seu blog atualiza a edição que quero pra mim ter do mundo. Um abraço,
Thereza

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