24.1.09

Relíquias para o Ano Novo

A sagrada circuncisão por Friedrich Herlin, 1466.

No último dia 3 de janeiro, o jornalista do Corriere della Sera, Armando Torno, nos falava não apenas das relíquias sagradas, mas também das relíquias laicas, desde a cabeça de Descartes até o cérebro de Gorky. Conservar relíquias não é, como se costuma crer, um costume cristão, e sim algo típico de qualquer religião e cultura.
No culto às relíquias, em parte, vibra uma espécie de pulsão que eu definiria mito-materialista, pela qual se pode encontrar novamente um indício do poder de um famoso ou de um santo tocando partes do seu corpo; por outra, responde a um gosto antiquário normal (por isso o colecionador disposto a gastar um capital não somente por ter a primeira cópia impressa de um livro famoso, mas também o exemplar que pertenceu a uma pessoa importante) e acontece, como cada vez mais freqüentemente nos leilões norte-americanos, que as "memorabilias" podem ser tanto as luvas (verdadeiras) da Jacqueline Kennedy como as luvas (falsas) que usava Rita Hayworth em Gilda.

Também não podemos passar por cima do fator econômico: na Idade Média, ter uma relíquia famosa era um valioso recurso turístico porque atraía fluxos de peregrinos, tal como hoje em dia uma discoteca da costa atrai turistas alemães e russos. Além disso, eu vi muitos turistas indo a Nashville, no Tennessee, para admirar o Cadilac do Elvis Presley. E isso que não era o único, pois ele o trocava de seis em seis meses.

Talvez tomado por um espírito natalino particular, em época de Reis Magos, em vez de navegar (como todos) na Internet para interceptar filmes pornôs, como meu humor é inconstante e lunático, decidi dedicar-me à busca de relíquias famosas.

Por exemplo, agora sabemos que a cabeça de São João Batista está na igreja de San Silvestro in Capite em Roma, embora uma tradição anterior dissesse que estava na catedral de Amiens. De todos os modos, a cabeça que se guarda em Roma careceria da mandíbula, que se conserva na catedral de São Lourenço em Viterbo.
O prato que acolheu a cabeça de Batista está em Gênova, no tesouro da catedral (também) de São Lourenço, junto com as cinzas do Santo, mas parte destas cinzas também foi conservada na antiga igreja do Mosteiro das Beneditinas de Loano, enquanto um dedo estaria no Museu dell'Opera da catedral de Florença, um braço na catedral de Siena e a mandíbula, como já falei, em São Lourenço, em Viterbo.
Na Catedral de São João Batista, em Ragusa, conserva-se um dos seus dentes, o outro, junto com uma mecha do seu cabelo, está em Monza. Dos trinta dentes restantes não há notícias. Uma antiga lenda dizia que em alguma catedral se conservava a cabeça de Batista com doze anos, mas não tenho constância de que exista nenhum documento oficial que confirme o rumor.

Santa Helena, mãe de Constantino, encontrou a Vera Cruz em Jerusalém. Os persas a pegaram no século VII, o imperador bizantino Heráclio a recuperou, e logo os cruzados a levaram ao campo de batalha contra Saladino. Infelizmente ganhou Saladino, e perdeu-se o rastro da Vera Cruz para sempre, embora já houvessem repartido alguns fragmentos: um dos pregos se conservaria na Basílica de Santa Cruz em Jerusalém, em Roma. A coroa de espinhos, que foi conservada durante muito tempo em Constantinopla, foi subdividida com a intenção de doar pelo menos um espinho a várias igrejas e santuários. A Sagrada Lança, que pertenceu a Carlos Magno e aos seus sucessores, hoje está em Viena.

O prepúcio de Jesus estava exposto em Calcata (Viterbo) até que em 1970 o pároco comunicou o seu sumiço. Mas reivindicaram a posse da mesma relíquia Roma, Santiago de Compostela, Chartres, Besançon, Metz, Hildesheim, Charroux, Conques, Langres, Amberes, Fécamp, Puy-en-Velay e Auvergne. O sangue que brotou da ferida lateral, recolhido por Longino, teria sido levado para Mântua, mas outro sangue conserva-se na basílica do Sagrado Sangue das Bruxas, na Bélgica.
O Berço Sagrado está em Santa Maria Maggiore, em Roma, enquanto, como é bem sabido, o Lençol Santo está em Turim. As fraldas do Menino Jesus estão em Aquisgrão, na Alemanha. A toalha usada por Cristo para lavar os pés dos Apóstolos está tanto na igreja romana de San Giovanni in Laterano quanto na Alemanha, em Acqs, mas não se pode excluir que Jesus tivesse usado duas toalhas ou que tivesse lavado os pés duas vezes. Em muitas igrejas conserva-se o cabelo ou o leite de Maria, sua aliança de casamento com José estaria em Perúgia, mas a de noivado está em Notre-Dame, em Paris.

Em Milão conservavam os restos dos Reis Magos, mas, no século XII, Frederico Barbarroxa os levou como pilhagem de guerra à Colônia. Modestamente, contei esta história no meu romance Baudolino, mas não pretendo fazer crer aos que não crêem.
Umberto Eco, no The New York Times [via Terra]

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