3.1.09

Uma Gênese


No princípio, era o Verbo. E o Verbo estava com Deus. E o Verbo era Deus.

Depois de o Verbo criar todo um mundo de substantivos concretos, Ele decidiu criar um último desses substantivos, o qual seria o rei dentre todos eles. E então criou o homem, dizem, à sua imagem e semelhança.

E deu Ele ao homem a tarefa de nomear os demais substantivos – uma tarefa enfadonha para uma divindade, empenhada em criar maravilhas do nada, mas divertida para um mero substantivo elevado à condição de mandatário de um mundo em criação, novo em folha. E o homem gostou da tarefa, até certo ponto – de início, foi boa a sensação do poder de nomear os outros animais, e do homem surgiram nomes grandiosos como antílope, leopardo, águia, jequitibá. Com o tempo, o homem foi maçando-se de sua tarefa e começou a ser irônico: a um animal majestoso, de alto porte - mas aparente excesso de peso -, deu um nome igualmente robusto, elefante; a outro, igualmente corpulento, deu um nome grandioso, quase sarcástico, que de tão sonoro quase não faz lembrar do lento hipopótamo. Ao fim da tarefa, o homem, animal que se cansa tão rápido das coisas, já estava a apelar para as onomatopéias ou para o expediente fácil da repetição, distribuindo nomes tolos como quero-quero, tico-tico, arara, tatu, camu-camu – um festival de mediocridades.

Enfadado, o homem retornou a Deus dizendo que sua tarefa estava cumprida, o que fez o Verbo erguer seu cenho metafísico em dúvida – já que eram tantos os substantivos concretos que criara e porque, talvez, esperasse estar liberto da impertinência do homem por mais tempo, para gozar de um merecido descanso após seis dias de árduo trabalho, projetando coisas agradáveis como o leito dos rios e as cores do sol, mas também umas não tão aprazíveis como o sistema digestivo dos mamíferos. Mas o homem mentiu, dizendo que tudo estava pronto como ordenado – e já emendou o discurso com um pedido:

- Quero uma companhia, Senhor; não faz muito sentido dar nome aos bois se não tenho com quem discutir sobre eles...

Deus achou até pertinente a ponderação daquele homenzinho impertinente, mas quis colocá-lo à prova e saiu pelo mundo a perguntar o nome das coisas. O homem sentiu-se acuado, pois viu que estava a ser testado por Deus, mas se saiu bem nos primeiros questionamentos, respondendo os nomes por ele dados na ponta da língua. Mas daí Deus foi afastando as folhagens e as copas das árvores com sua enorme mão imaterial e apontando animais e plantas que o homem, preguiçoso, não tinha ido lá conferir. A saída do homem foi inventar na hora alguns nomes – se o Senhor apontava um pássaro qualquer à beira de um brejo, ele buscava lá na memória o nome de um outro pássaro que já havia batizado e tascava um “pássaro-do-brejo”; se a mão divina trazia até ele uma planta que nascia lá no topo da montanha, o homem, ladino que só, já se adiantava em chamá-la de “erva-da-montanha”!

O Verbo não teve outra escolha senão criar uma companhia para o homem – e já prevendo que ele não se contentaria com um único ser humano ao seu redor para se jactar de seu papel de nomeador oficial do início dos tempos, Deus criou-lhe um humano oposto ao homem, em vários sentidos, mas melhor que ele, pois seria dotado de uma sensibilidade mais aflorada, uma capacidade maior de atentar para os detalhes (Deus não aceitara de bom grado a existência de toda aquela quantidade de “pássaros-da-montanha” e “ervas-do-brejo” que o homem nomeara) e, mais que isto, o dom divino da criação – dom verdadeiro, não apenas aquele de dar nomes às coisas –, por ser o humano capaz de gerar novas vidas.

O homem devia estar tirando uma pestana quando sentiu uns dedos leves – nada parecidos com a mão divina que era capaz de erguer montanhas em segundos – a tocar seu ombro. O rei do mundo novo abriu os olhos e de imediato deu nome àquela nova maravilha do Senhor – mulher. Ela riu-se, gostou do som da palavra e pensou que era algum elogio – mas o homem ainda não tinha pensado em criar os adjetivos. Talvez por conta dessa nova criação divina é que tenham surgido os galanteios, já que a mulher começou a fazer uso das coisas da criação para se tornar mais bela e atraente aos olhos do homem, que estava cada dia mais à mercê daquele novo ser que Deus colocara para ser sua companhia. O homem passava então os dias a passear pelo mundo novo em companhia da mulher, mostrando a ela os nomes que ele dera a cada animal e a cada planta e a cada acidente geográfico. E ela sorria, marota, a cada nome estranho que ele dizia. Não tardou muito para que os dois andassem unidos um ao outro, feito unha e carne. Para agradá-la e obter alguns benefícios mais de sua companhia, o homem criou, finalmente, os adjetivos, palavras que não davam nome a nada, mas sim atribuíam às coisas qualidades que, segundo o homem, as diferenciavam de todas as outras. Assim, ele usou do dom das palavras para exaltar a mulher sobre as demais criaturas, fugindo dos planos de Deus de igualdade entre os seres. Não raro ele blasfemava em segredo, chamando-a de “divina” ou “angelical” – não sem antes olhar para os céus à procura de algum sinal da presença da divindade.

Mas tolo foi o homem em imaginar que era o único: o Verbo já havia conjugado, em outras partes do mundo, outros homens iguais a ele e, para eles, outras mulheres iguais a ela. Quando descobriu isso, o homem tomou-se de um profundo desgosto e, sentindo-se ameaçado pelos outros homens da criação, inventou os adjetivos pejorativos, alguns advérbios e outras muitas palavras – as onomatopéias, os vocativos, os apostos desrespeitosos – cuja função era tão-somente desdenhar dos demais homens, em uma estratégia pueril de se fazer maior aos olhos da mulher ao depreciar os possíveis rivais.

E o homem descobriu que, agrupando aos nomes algumas palavras, e com elas as idéias que carregavam sob os sons que representavam, ele conseguia diminuir e segregar, desprezar e combalir os inimigos que seu medo construíra em relação aos outros homens da criação. Não raro ele começou a usar tais adjetivos como desculpa para adotar medidas de proteção aos seus filhos, de prestígio aos seus pares, de benefício para seus companheiros de clã e de defesa da honra e da moral de seus próximos.
E assim foi criado, pelo homem e não por Deus, o preconceito.

Robertson Frizero Barros, no blog Locutório.

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