Algumas experiências que temos na infância e adolescência ficam gravadas em nossa memória.
Tenho uma lembrança interessante sobre o poder do rótulo e a vaidade humana.
Cresci até a pré-adolescência em Natal-RN. Aqueles dias eram difíceis. O país atravessava uma crise financeira agravada pela crise mundial de petróleo. O sonhado “milagre brasileiro”, parafraseando Millor Fernandes, carecia mesmo de um milagre. Estamos falando dos anos 70. Alguns artigos eram extremamente difíceis. Especialmente os importados – quase inexistentes. Só por contrabando, ou quando alguém viajava para o Exterior. O fato é que, não sei como, uma garrafa vazia de uísque importado chegou em casa. Acho que foi coisa de meu irmão mais velho para zoar com alguns amigos. Encheu a tal garrafa importada com um genuíno uísque nacional e deixou a garrafa com o restante do ardente líquido ao lado. Quando seus amigos chegaram, fez com eles o “teste de sensibilidade”. Ofereceu o conteúdo de cada garrafa por vez. Todos elogiaram o “importado”.
- É mais encorpado, dizia um deles.
O outro justificava cheio de um pretenso conhecimento técnico:
- É o tipo de malte que eles usam.
E eu no meu cantinho morrendo de rir por dentro. Estavam bebendo exatamente o mesmo líquido, mas o sabor lhes parecia diferente.
Esta história mostra o poder que há no rótulo.
Rotular faz parte de um sistema de defesa humano. Ajuda-nos a reconhecer imediatamente aquilo que procuramos. Assim, rotulamos tudo. Lugares, coisas… Também colocamos sobre as pessoas, rótulos que descrevem a impressão que temos de seu interior: frios, divertidos, rudes, amáveis, inteligentes, sensíveis… Frequentemente essas opiniões são fruto de uma visão superficial e apressada dessas pessoas.
Exatamente por isso, Jesus me impressiona. Conviveu com muita gente sem jamais adesivar rótulos em suas testas. Estava ali para o que desse e viesse. Olhava por outros ângulos e conhecia os corações. Não mantinha uma imagem “idealizada” dos seres humanos e por isso mesmo seguia com a liberdade de ser cheio de compaixão.
Um desses casos característicos é o episódio que lemos em Mc 2: 13,14, sobre Levi. Certo dia, passando pela rua, Jesus o chamou para junto de si. Poderia idealmente ter sido qualquer um. Qualquer bom religioso. Mas não. Chamou justamente aquele a quem todos provavelmente odiavam, por causa do rótulo escrito em sua testa: coletor de impostos – leia-se: ladrão, capacho de Roma, venal… só para ser leve – respeitando as senhoras e crianças que porventura leiam este texto!
Havia uma relação de ódio entre os cidadãos e os coletores, especialmente os que eram judeus. Também, tidos como traidores, porque sobre taxavam seus irmãos, acumulando para si fortuna.
Por favor, não imagine que Levi seria diferente de todos os outros cobradores de impostos. Essa visão idealizada dos personagens Bíblicos, como se fossem supra-humanos nos priva de enxergar além. Ver Levi como um homem comum, empresta ao Evangelho maior beleza. Deus ama o ser humano, não pelos rótulos que lhe são colocados, mas por sua essência, ainda que pecadora. O pior dos criminosos tem em sua alma pontos luminosos, assim como o maior dos santos segreda os seus pontos sombrios. Deus almeja alcançar os dois igualmente, de acordo com o desejo incansável de nos transformar em alinho à imagem de Seu Filho. Saber disso, enche minha alma de esperança, ternura e coragem para não aceitar os rótulos bons ou ruins que colocam sobre mim, ao mesmo tempo em que me conduz ao desejo de jamais rotular as pessoas, de não ter uma visão idealizada dos seres humanos, nem para cima nem para baixo.
Insisto em acreditar que as pessoas mudam. Levi mudou inclusive de nome. Adotou o “Mateus” em uma completa e complexa reedição de sua história. O coletor – provavelmente corrupto – transformou-se em testemunha e historiador do maior de todos os acontecimentos: a visitação do Deus, que não levou em conta as placas que estão sobre nós.
Deixemos de lado os rótulos. Relacionemo-nos na base do improviso. Tal como Jesus, deixemos que as pessoas sejam elas mesmas.
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