24.4.10

Surpresas urbanas

Silent sunset with trees

Silent sunset with trees - by Helena Pacitti

Cena 1: São 19 horas e um congestionamento monstruoso acontece em uma rodovia federal.Com as pistas todas paradas, apressadinhos vão pelo acostamento, exceto quando aparece algum carro enguiçado.

Trafego na pista de menor velocidade, o que não faz diferença alguma a essa hora. À direita,uma cena insólita: um carro enguiçado com o capô todo aberto e uns sacos plásticos mal ajeitados no porta-malas. Do lado de fora, os 3 ocupantes fazem um ‘lanchinho’ com biscoitos e refrigerantes, sentados no guard rail, enquanto aguardam socorro. A 10 metros da traseira, ao invés do triângulo de emergência para avisar do carro quebrado, postam-se dois manequins sem pernas, sem cabeças e sem braços; só os troncos, lado a lado.

Foi o improviso que fizeram. Dá certo. A 100 metros, ninguém ousa chegar perto daquela estranheza.

Decididamente, o brasileiro tem criatividade.

Cena 2: Caminhando na calçada de uma movimentada rua – paralela ao jardim municipal – noto, com a visão periférica, algo se mover acima da minha cabeça. Ergo os olhos e dou de cara com um rabicho bicolor que balança no fio elétrico entre os postes.

É um minúsculo miquinho preto que me acompanha com curiosidade. Assovio e ele move a cabecinha.Ando e ele anda. Paro e ele pára.

No lado oposto da rua reparo em outro miquinho, um pouco maior que o primeiro, parecendo manter a guarda do pequeno.Comentei mais tarde o fato com o Mario, que me explica: provavelmente os micos estavam morrendo de pena de mim -‘aquele bicho grande que só consegue andar com os pés no chão, sem nenhuma coordenação ou equilibrio.’

Cena 3: Estaciono o carro na rua, em local permitido, vou correndo a farmácia, pago com cartão, estou sem uma moeda. Volto rapidamente, que dia perfeito, nem flanelinha tem!

(“Flanelinha” é giria carioca para guardadores de carro que zanzam na rua, que invariavelmente constrangem o motorista, isso quando não o extorquem)

Engano meu. Lá na frente o flanelinha aparece, vem correndo de chinelos, afobado, com a mão já estendida. Além de eu não ter moeda nem troco, vou ter que dizer isso a ele, sabe-se lá se vai me agredir?Pensei isso porque ando assustada.

‘Calma,‘- digo a mim mesma – ‘ele é feito você’. Mas são tempos difíceis, onde se desconfia da própria sombra, e na cidade grande todo mundo já ganha um estereótipo negativo: ‘o flanelinha é mau, as motoristas são uma lástima, todos os mecânicos inventam serviço, os taxistas sempre te dão a volta.’

Bem, melhor ser eu mesma. Abro as janelas, sorrio como se fosse a um velho amigo e digo a verdade. Estou sem trocado e sem moedas. Posso ficar lhe devendo?

Ao contrário do que imagino, ele responde com um sorriso largo e, galante, me cumprimenta: “Não tem problema não, moça. Com esse seu sorriso já ganhei meu dia!”

Cena 4: Depois de muitos dias de intensa chuva o céu está completamente limpo, e ganha, ao pôr-do-sol, tons azuis espetaculares. Há um resto de luz rosada na paisagem, a noite vai engolindo o dia, vejo a silhueta escura de árvores enfileiradas no lusco-fusco, e aves grandes, como garças e gaivotas, sobrevoam um pequeno charco de praça.

Algumas estrelas já piscam, lá longe passa a linha do trem,vazia,quase não há barulho.

Registro a paisagem com a máquina fotográfica. Vão me perguntar de onde é essa cena paradisíaca, quem sabe uma fazenda ou um resort de férias. Vou responder, meio sem graça, que é a saída da refinaria de petróleo onde trabalho, região onde se localizam pelo menos 150 grandes empresas e indústrias do Grande Rio.

Pois quem diria. Em um lugar tão inóspito,a natureza ainda resiste e consegue, ao final de cada santo dia, apresentar um espetáculo de silêncio e paz.

Helena Beatriz Pacitti

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