De vez em quando, Marcela emite pequenos sons na forma de um "a" curto. Cúmulo da surpresa, o bebê mamou no peito da mãe -bastou encostar em sua boca o peito de Cacilda.
E a pediatra já cogita dar alta para o bebê ir para casa. Católicos falam abertamente em "milagre" para se referir à sobrevivência de Marcela de Jesus, agora transformada em símbolo da luta antiaborto.
No site de relacionamentos Orkut, a comunidade Força Marcela Oramos por Vc, criada em 29 de novembro, já reúne 511 membros (em 21/12 já são 681). Segue crescendo. Um documentário sobre a vida do bebê e sua família está em fase de produção, o câmera entrando e saindo do quarto do hospital.
Todos os dias, rodas de orações são formadas na Santa Casa. Na terça-feira, ativistas da organização Santa Gianna Beretta Molla, sediada em Franca e autodefinida como "a favor da família, em defesa da vida", foram rezar o "Creio em Deus Pai" com Cacilda e o diácono, na presença do bebê.
Recorde esse nome: santa Gianna, a santa antiaborto. Canonizada pelo papa João Paulo 2º em maio de 2004, seu exemplo foi ter-se recusado a fazer um aborto quando, grávida, os médicos lhe disseram que levar a gestação a termo a mataria. Conforme a previsão dos médicos, ela morreu ao dar à luz. A criança viveu.
Dois milagres atribuídos a Gianna, garantiram-lhe a canonização, ambos no Brasil, apesar de a santa ser italiana (de Milão) e nunca ter estado em vida por aqui. Segundo o ginecologista e obstetra Thomaz Rafael Gollop, professor da Universidade de São Paulo, Marcela de Jesus tem os hemisférios cerebrais destruídos, um diagnóstico fechado de anencefalia e um prognóstico certo: o da progressiva deterioração de seu organismo, até o perecimento.
Malformação com causas multifatoriais, a anencefalia atinge mais meninas do que meninos e, explica o professor, em 60% dos casos, relaciona-se a uma dieta materna pobre em ácido fólico durante o mês antecedente e posterior à concepção. "Infelizmente é um quadro irreversível", diz o docente.
O chefe do setor de neurologia infantil da Universidade Federal de São Paulo, o professor-adjunto Luiz Celso Vilanova, explica que, na anencefalia, uma parte do cérebro, o córtex cerebral, responsável pelas funções mentais superiores, não chega a se formar.
"O que existe é o tronco cerebral", uma estrutura primitiva que coordena reações a estímulos, batimentos cardíacos e respiração, entre outras funções. "O bebê anencéfalo é incapaz de sentir -para isso ele precisaria do córtex cerebral-, mas ele é capaz de reagir a estímulos", explica o professor.
"Um bebê anencéfalo pode ter, no máximo, reações reflexas, como aquelas típicas do estado vegetativo, sem traço de consciência. Emoções, sentimentos e pensamentos estão fora do horizonte de um bebê nessas condições", afirma.
Diretora da Anis, ONG que é referência feminista em pesquisa sobre bioética, a antropóloga Debora Diniz tem assessorado várias mulheres grávidas de fetos anencéfalos nos últimos anos. Sobre Marcela de Jesus, Debora entende que não se pode fazer da excepcionalidade do caso uma norma que se imponha sobre as grávidas de fetos anencéfalos. "Em um Estado laico, é absurdo pretender que todas as mulheres grávidas de fetos anencéfalos passem a acreditar em milagres."
"É à mãe que cabe decidir se deve ou não prosseguir com a gestação. Tanto seria errado impor a interrupção da gravidez quanto seu contrário. O caso desse bebê só reforça a tese de que se trata de uma decisão que só cabe aos parentes e a mais ninguém tomar", diz.
Na pequena Patrocínio Paulista, 14 mil habitantes, nos contrafortes da serra da Canastra, quase divisa com Minas Gerais, existe o bairro Palmital, onde era a fazenda de mesmo nome, centenária e agora loteada entre os herdeiros, todos parentes dos pais do bebê anencéfalo, que também moram lá.
A prima Nelsina Terezinha Figueira de Freitas, 52, mora ao lado da casa dos Ferreira, em uma construção de taipa de pilão, curral anexo, no meio de um cafezal. Vergada diante de uma Nossa Senhora, a prima conta o que viu na Santa Casa, ao visitar Marcela de Jesus: "Eu vi um anjo vestido de azul, uma bênção. Ela sorria e soltava um gorgonadinho, como se quisesse falar alguma coisa". É a fé.
fonte: Folha de S.Paulo
21.12.06
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