Pessoas merecem respeito. Idéias, não. A idéia de que determinados "pecadores" deveriam ser queimados vivos para "salvar" suas "almas imortais", por exemplo, já pareceu respeitável a grande parte da cristandade. Não é mais. Felizmente. Deixar de questionar teorias, doutrinas e filosofias é renunciar a pensar, e isso eu me recuso a fazer.
Escrevo esse breve desabafo a propósito de alguns dos e-mails que recebi por conta de minha última coluna, "Santa ilusão", na qual defendi a defesa que o biólogo britânico Richard Dawkins faz do ateísmo em seu último livro, "The God Delusion" (a ilusão ou o delírio de Deus; a obra ainda não foi traduzida para o português e não sei se alguma editora brasileira planeja publicá-la).
A maioria das mensagens tinha, pelo menos, a virtude de ser educada; umas poucas, não. E, já que falamos em educação, peço desculpas a todos aqueles a cujas missivas não pude responder. É que o número de e-mails aliado à complexidade de algumas das objeções tornava a tarefa humanamente infactível. Por isso ensaio hoje uma resposta geral. Sei que não conseguirei dar conta de todas as questões levantadas, de modo que vou focar-me nas mais gerais.
O ponto mais veementemente criticado de meu texto foi aquele em que classifiquei como, digamos, "idéia exótica" (nunca quis vexar ninguém) a transubstanciação, a noção compartilhada por católicos e alguns outros ramos do cristianismo de que o vinho e a hóstia, depois de consagrados, se tornam realmente o sangue e o corpo de Cristo. Não é preciso ir muito longe para perceber que tal pretensão desafia a experiência e os sentidos humanos. Hoje, evidentemente, cada um é livre para acreditar ou não nisso. Digo hoje porque, no passado, nem sempre foi assim.
Tomemos o caso do teólogo cristão Berengar de Tours (c 999-1088), que, tentando conciliar o fato verificável e verificado de que a farinha da hóstia não se converte em tecido muscular com as exigências da religião, sugeriu que a transubstanciação não deveria ser tomada muito literalmente. Para ele e seus seguidores, valia a "impanatio", isto é, o conceito de que a carne de Cristo estava no biscoito de modo análogo ao que Deus e seu Filho estão na mesma pessoa (união hipostática) --uma outra idéia que não pára em pé, mas deixemos estar.
O pobre Berengar foi considerado herético, preso (por razões que a "Enciclopédia Católica" considera "obscuras") e, pouco depois, abjurou sua teoria. Bem, ele ainda teve mais sorte do que o clérigo John Frith, que foi queimado vivo em 1533 porque se recusara a aceitar o dogma da transubstanciação.
É, portanto, em nome da segurança de cada um de nós que devemos manter todas as idéias, sejam elas proferidas no campo lógico, jurídico, religioso, abertas a escrutínio. Na pior das hipóteses, ninguém perde nada de concreto e estaremos exercendo nossa liberdade; na melhor, alguém deixará de se machucar.
Como o leitor já deve ter concluído, faço objeções fortes a teses religiosas, mas elas não se confundem com ataques a pessoas religiosas. Um exemplo: em 2004, na coluna "Depois do véu, a barba", contrariando meus instintos anticlericais, critiquei a Lei da Laicidade francesa, que proibiu muçulmanas de usar o véu em escolas públicas e baniu outros símbolos religiosos "ostensivos".
Minha argumentação foi a de que o louvável objetivo de integrar os franceses num espaço religiosamente neutro não deveria ser perseguido de forma autoritária e com o sacrifício da mais elementar das liberdades individuais, que é a de possuir uma individualidade e exprimi-la pacificamente.
Também não sou ingênuo a ponto de acreditar que um tão miraculoso quanto hipotético fim de todas as religiões lançaria a humanidade numa era de paz. Acho, como Dawkins, que a religião serviu e ainda serve para justificar alguns dos piores crimes já cometidos pelo homem contra o homem, mas não creio que devamos subestimar nossa capacidade de matar uns aos outros. A história mostra que, quando não tiramos a vida de um semelhante porque ele reza para um outro Deus, somos perfeitamente capazes de arrebatá-la por outras razões, como a cor da pele, as preferências políticas e quem sabe até a ponta pela qual ele costuma quebrar os ovos que cozinha para o café da manhã. O problema nunca foi Deus, mas a natureza humana --e receio que tenhamos produzido aqui, sem querer, mais um argumento contra a idéia de Providência benevolente.
Muitos leitores --e esta talvez tenha sido a crítica mais comum-- afirmaram que o ateísmo nada mais é que o fanatismo dos religiosos sem um Deus. É claro que pode sê-lo. Regimes stalinistas perseguiram e aniquilaram comunidades religiosas em nome de uma teleologia que nada ficava a dever à escatologia cristã. Só que ele não precisa sê-lo.
Aqui repousa a maior das incompreensões em relação ao texto de Dawkins. É verdade que o autor não ajuda muito com seu estilo altamente provocativo e com um senso de humor que alterna entre o sutil e o debochado. O biólogo, ao contrário de muitos dos supostos defensores da religiosidade, leva a sério os argumentos dos teólogos e os analisa como se fossem hipóteses científicas --algo que me parece perfeitamente razoável. Ao fazê-lo, é claro, Dawkins não consegue provar que Deus não existe.
Em termos lógicos é impossível provar a inexistência do que quer que seja. Mas é o que basta para colocar o Arquiteto do Universo ao lado de outras entidades cuja existência não pode ser cientificamente descartada, como Papai Noel, o Coelho da Páscoa e o Monstro do Spaghetti. (continua)
20.1.07
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