Em maior ou menor escala, em todas as sociedades modernas atuais as crenças estão mais vivas do que nunca. Mas isso não é um paradoxo, um contrafluxo na corrente racional vitoriosa do conhecimento humano? Não se convencionou que crença e ciência não combinam, são como óleo e água? Os dogmas milenares que orientam a fé de cristãos, judeus, muçulmanos ou budistas são todos muito respeitáveis, mas em pleno século XXI não são apenas anacronismos deslocados do mundo da razão e da tecnologia? Não. A novidade é que não existe paradoxo. Existe, sim, o reconhecimento dos limites dos dois campos da percepção humana dos fenômenos naturais.
Não passa um mês sem que saiam dos laboratórios explicações cabais sobre o que se pensava ser algo sobrenatural. O túnel de luz que as pessoas que estiveram em coma contam ter visto parecia misterioso e insondável. Esse túnel seria uma entrada entreaberta para a eternidade, que se deixava examinar de esguelha por alguém que estava prestes a abandonar o mundo material.
Essa e outras experiências sensoriais que se têm à beira da morte são todas reações mensuráveis e previsíveis do cérebro humano. Essa revelação torna os mistérios da vida e da morte menos espantosos? Não. Nada. Hoje soa arrogante e tola a reação dos orgulhosos astrofísicos nos anos 80, quando os satélites mandavam para a Terra sinais que confirmavam a teoria do Big Bang, a súbita explosão original que deu origem à matéria, à energia e às leis que regem a interação entre ambas: "Agora que a física já explicou como surgiu o universo, não há mais lugar para Deus". Tem chumbo trocado: quem pode imaginar uma reação mais tosca e pedestre do que dizer que a Lua perdeu o romantismo para os namorados depois que os astronautas americanos colocaram suas botas por lá?
Claro que o núcleo duro da melhor ciência despreza a noção de Deus. Da mesma maneira, os metafísicos de todos os sabores e cores não enxergam utilidade alguma no método científico. O cenário atual que emana do córtex cerebral da humanidade – pelo menos da sua porção que se manifesta conectada na internet – é o de que, apesar dos avanços cada vez mais espetaculares da ciência, permanecem intactas as emoções humanas, as sensações de tremor diante do infinitamente pequeno ou do infinitamente grande. Por mais que se explique com crescente precisão como funciona o mundo natural, persiste para a maioria das pessoas a crença de que existe algo mais poderoso ainda.
Há nessa persistência, por ironia, uma explicação científica, estudada a fundo pelos cientistas. A fé, assim como as religiões criadas sobre ela, persiste por ser um componente primordial da evolução humana. Em algum momento durante a última era do gelo, que terminou 12 000 anos atrás, o homem desenvolveu o pensamento simbólico. Interessou-se em saber que tipo de força existia por trás dos fenômenos naturais. Começou a enterrar os mortos e a enfeitar seus túmulos com flores. No papel de única espécie capaz de antecipar a própria morte, o ser humano precisou vislumbrar entidades maiores e mais poderosas do que ele para conseguir suportar essa certeza.
Muitos biólogos evolucionistas acreditam que as religiões – e tudo o que elas envolvem como instituições organizadas – surgiram como uma superadaptação do homem ao meio ambiente e prosperaram por conferir vantagens a seus praticantes. A crença no sobrenatural ajudou a convivência do grupo e, portanto, seria a gênese da civilização. O biólogo americano David Sloan Wilson, da Universidade Binghamton, autor do livro A Catedral de Darwin: Evolução, Religião e a Natureza da Sociedade, avalia que o impulso religioso se desenvolveu cedo na história dos hominídeos porque ele ajudava a criar grupos mais coesos, em que florescia o sentimento de fraternidade e solidariedade. "A crença foi uma arma poderosa na luta contra adversários menos unidos e menos organizados", disse Wilson a VEJA. (continua)
7.2.07
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2 comentários:
Estou convencido que a discussão está com o foco errado. O correto é arguir se Deus atua ou não na sociedade. Milagres pessoais não servem de parâmetro haja vista serem de foro íntimo. Para mim esse esforço humano em fazer a fé de um ser a fé do outro, demonstra o quanto Deus está interessado em religião - nada. E só se conhece um deus através de religião. Já que o homem não vive sem religião que fique assim. Os cientistas são humildes por reverem constantemente o que crêem ser o certo.
Desculpe, mas não creio na humildade dos cientistas. A cada revisão do que acreditavam ser correto, surge no "revisor" a declaração peremptória da posse da verdade, até que a próxima revisão seja feita, como foi com a anterior, e o ciclo da arrogância se repete indefinidamente.
Um prisma que não vejo ninguém comentar: o método científico realmente descobre cada vez mais como as coisas funcionam; mas porque as coisas funcionam assim, e não assado? Por que a gravidade, não enquanto conceito, mas como agente, funciona como funciona? Sem Deus, a ciência nunca conseguirá explicar o porquê das coisas serem como são. O máximo que podem fazer é dissecar como...
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