19.3.07

Trilha sonora do pecado

Há 90 anos, nesta época, os demônios se cansaram da pasmaceira daquela temporada no inferno e resolveram vir à Terra em busca de novos adeptos para suas cores. Alguém sugeriu usar a música para atrair tais adeptos. Assim, vários diabinhos, desses de Carnaval, com chifre, tridente e ceroula do América, deram um jeito para que, em curto espaço de tempo -entre fins de 1916 e começos de 1917-, surgissem três novos ritmos, depois ditos demoníacos: o samba, o jazz e o tango.

Não que eles já não existissem desde 1900, praticados pelos negros e brancos pobres do Rio, de New Orleans e de Buenos Aires, respectivamente. Apenas não tinham ainda os contornos definitivos. E como, em boa parte, eram música não-escrita, seu alcance se limitava aos que os ouviam ao vivo, nos bordéis e nas biroscas.

Era preciso difundir esses ritmos para que mais gente se contagiasse pelo seu potencial de trilha sonora do pecado, da lascívia e da devassidão. Para sorte dos demônios, um novo aparelho, igualmente demoníaco, também já fora inventado: o fonógrafo. Só faltava vontade política para que fossem gravados e se espalhassem, fazendo as pessoas descer da graça celestial que lhes era garantida pelas valsas e modinhas de até então.

Foi assim que, em dezembro de 1916, a Casa Edison, no Rio, gravou "Pelo Telefone", de Donga e Mauro de Almeida, com o cantor Baiano, e que se tornou uma febre nacional. A 26 de fevereiro de 1917, a Victor, em Nova York, gravou o pândego "Livery Stable Blues", com a Original Dixieland Jazz Band. E, no dia 9 de abril, a Odeon, em Buenos Aires, gravou "Mi Noche Triste", com Carlos Gardel, o primeiro tango cantado e já lindamente cafajeste.

Não sei se o inferno melhorou tanto assim. Mas a Terra ficou infernal com esses novos ritmos.

Ruy Castro, na Folha de S.Paulo.

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