12.5.07

Louvado seja São Galvão!

Agora, justamente agora, a Divina Providência, providencialmente, traz o Sumo Pontífice ao maior país católico do mundo. Justamente quando emergem as forças neo-pentecostais ameaçando o poderio desta Igreja na Terra Brasilis. Justamente agora que o Grande Olho vê o castelo ser invadido por cavaleiros inimigos bem armados e evocando o nome do Senhor para crescer e multiplicar-se. Justamente agora far-se-á o primeiro santo genuinamente brasileiro!

Louvado seja São Galvão que, envolto em um facho de luz, descerá das alturas para salvar ao mesmo tempo dois impérios em crise e efetuar o definitivo milagre que ratificará a sua condição! Amém!

Faz dois milênios mais sete anos que na Galiléia pregaram numa cruz de madeira um rapaz alegadamente rebelde para os padrões da época. Dizem que tinha cabelos e barbas compridos, olhos claros e andava vestido com um aspecto maltrapilho. Evocando as palavras de Deus, reunia seguidores à sua volta, pois estes acreditavam ser ele o enviado do Senhor.

As autoridades, preocupadas com o comportamento daquela gente, obviamente, abriram os olhos. Quem este nazareno mulambento está pensando que é para desafiar as ordens de Roma e auto-proclamar-se o Rei dos Judeus? “Alto lá!”, bradou César.

Conta-se que deram uns caraminguás quaisquer para um de seus amigos mais fiéis – justo o que zelava pelas economias do grupo. Mas é bem provável que os centuriões tenham enchido de bolacha a cara do tesoureiro para que ele dissesse onde o cabeludo havia se tocaiado.

Pilatos, então, colocou lado a lado o dito messias e um ladrão de galinhas qualquer para que a horda decidisse quem seria o crucificado. O povão, indignado com a petulância daquele moleque que se dizia filho de Deus, pregava a desobediência ao imperador romano e alegava-se portador de poderes divinos, mandou-o para os pregos.

Ficou instituído que, três dias depois da morte, o rapaz ressuscitou e subiu aos céus para sentar-se ao lado do Senhor. Mas a verdade é que ele continua ali, pregado na mesma cruz há 2007 anos. E assim, ouvimos, de geração a geração, a história deste homem para nos fazer crer que o sofrimento redime, que a abnegação é o melhor caminho, que devemos sempre oferecer a outra face e perdoar a quem nos tem ofendido. A mensagem de amor, lealdade e justiça que deixou quando de sua passagem pela Terra, hoje é encoberta por axiomas que apregoam a culpa, a resignação e a obediência.

Do altar, sua imagem sustenta uma igreja conservadora, desumana e rancorosa. Uma instituição que queima, esquarteja, escalpela e empala impiedosamente os ditos "infiéis", abusa, violenta e estupra crianças, ignora pandemias como a AIDS, que dizimam populações em níveis continentais, concentra uma riqueza incalculável em ouro e outros metais. Tudo em nome de poder, influência política, religiosa e, acima de tudo, ideológica.

A imagem do corpo seminu e ensangüentado preso a dois troncos de madeira sobrepostos transversalmente serve como sustentação de dogmas que ditam o comportamento de milhões (seriam bilhões?) de pessoas em todo o mundo através de valores morais transmitidos ao longo dos tempos e enraizados de maneira inexpugnável até mesmo na mente do mais convicto dos ateus.

Atuando como o mais poderoso instrumento de manutenção da ordem estabelecida, a Igreja utiliza a fé de maneira a oferecer respostas aos questionamentos mais inexplicáveis possíveis. Assim sendo, desde sempre as instituições religiosas, ditos representantes lá de cima, andam de mãos dadas com os mandatários cá debaixo, concedendo-lhes autenticidade, mas também reivindicando o seu quinhão.

Quem não se lembra que o bom velhinho Karol Wojtila serviu de sustentação ideológica para a queda do regime comunista na Polônia nos anos 80? E o fato de as políticas de incentivo ao uso de preservativos não serem eficazes, será que não tem nenhuma relação com a proibição de seu uso pelo Vaticano, daí os poderes públicos não quererem contrariar os ditames da Igreja Católica? Sei lá, é só um palpite...

A noção maniqueísta que temos das coisas, bem e mal, certo e errado, culpa, pecado, sofrimento e redenção, devemos à moral constituída, disseminada e consolidada pela religião. Nos tempos pós-pós-pós-modernos em que vivemos, buscam-se alternativas terrenas ao fatalismo da redenção celeste pós-morte. Cria-se, portanto, um mundo paralelo ao real em que tudo é artificial e virtual, desde o alívio da dor mais banal às relações interpessoais. Quando tudo o que interessa é unicamente o prazer, faz-se de qualquer coisa para evitar a dor e o sofrimento, mesmo quando estes são inevitáveis.

(Uma cena que ilustra muito bem esta idéia está no filme Trainspotting, adaptação para as telas do romance homônimo de Irvine Welsh por John Hodge, em que o bebê de uma das personagens é encontrado morto no berço e, terrificados e inertes com a situação, os personagens, inclusive a mãe, correm para as agulhas e entopem-se de heroína).

Para as religiões neo-pentecostais, em que o lucro não é condenável, a saída é o trabalho e o louvor a Deus. Um Deus presumível e de quem se espera a redenção no final dos tempos, que ensina, pune, castiga, como fez com Jó, que mesmo assim, manteve-se fiel e temente a ele até a morte. Abandonados por aqueles a quem confiou poderes cá embaixo, porém abençoados pelos representantes de Deus na Terra, milhões de jós penam por aqui, tementes a este Deus inventado pelo homem e sustentado pela adoração de seus seguidores.

Conformados com nossa condição miserável e convictos de que tudo que aí está tem uma explicação incompreensível para nós mesmos, seguimos nosso cotidiano comezinho, comendo o pão que o Diabo amassou em nome de Deus. E, nas horas vagas, ingerimos substâncias alienantes da realidade, consumimos subterfúgios paliativos às nossas dores e desfrutamos de vidas alheias em busca de algo alentador, buscando falsas realidades na espera de uma suposta redenção divina.

Ciço Pereira, jornalista e blogueiro.

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