Logo no início do livro (pág 12), o autor cita a vergonha que muitos têm dos padrões inferiores presentes na “arte cristã”. Acredito que isso seja apenas uma extensão do que já acontece em outras áreas. Somos irrelevantes do ponto de vista social, na educação, no universo literário e por aí vai... Na atuação política, estou recebendo zilhões de mensagens eletrônicas para ir a Brasília a fim de me manifestar contra projetos homófilos do governo.
Na época do escândalo dos sanguessugas pretensamente lavados pelo sangue, ninguém me convidou para me posicionar contra a “cambada evangélica” do Congresso, como alguns amigos a chamam.
O uso impróprio de algumas dualidades bíblicas parece ter condicionado o cristão a enxergar o mundo de forma binária. Luz ou trevas, quente ou frio, céu ou inferno, ajuntar ou espalhar, ovelha ou bode... Parece que o modelo do profeta persa Mani ainda está em vigor no nosso meio. A diferença é que na hierarquia maniqueísta os presbíteros também eram chamados de “filhos da inteligência”. Não sei se podemos usar esse mesmo rótulo...
Infelizmente, a palavra “cristã” ainda é um adjetivo que desqualifica o termo ao qual for agarrado. Assim, arte cristã é sinônimo de algo menor. E quem diz isso tem razão. Quais são as manifestações artísticas no seio sem leite do nosso povo? Vamos lembrar um pouco do que rola em nossas comunidades.
- jograis de senhoras no Dia do Pastor, com o indefectível acróstico na cartolina.
- apresentações infantis em que o ponto alto acontece quando a criança se esquece do texto
- peças de Natal em que não pode balançar o menino Jesus pois a boneca corre o risco de dar risada ou emitir outros ruídos menos nobres
- grupos de dança com meninas vestidas com roupas brancas e longas apontando o céu, você e o coração, num pastiche que teimam em chamar de “coreografia”
Tudo é tão pobre que necessita receber o apoio de adjetivos numa tentativa vã e ridícula de colocar essa arte num patamar aceitável. Assim, temos por exemplo a “dança profética” e o “louvor extravagante”. Tudo debaixo de muita “unção”, palavra-coringa usada para rebater argumentações que apontam a fragilidades técnica e artística dessas práticas. É um lixo, mas tem unção. "Quem é você para se levantar contra os ungidos de Deus?", perguntam.
Esse tipo de observação mostra a indigência que também vivemos em vários campos da teologia. No entanto, a argumentação é tão tosca que não deixa de ser um exercício de criatividade que talvez tenha como origem o ócio intelectual de muita gente bem-intencionada. Valha-nos, são Domenico Di Masi!
Infelizmente, a mesmice é a zona de conforto pela qual caminham os súditos do Satã-Mercado. Ontem foi divulgada uma pesquisa realizada por duas universidades brasileiras. O levantamento constatou que 11% dos brasileiros têm mais de uma religião. Em muitas das chamadas “empresas cristãs”, por vezes as velas são acesas de modo alternado para destinatários diferentes. Às 8h, o culto é uma bênção. Às 9h, os royalties não são pagos. Às 10h, artistas são espoliados em contratos nada ungidos. Às 11h, a mídia chapa-branca divulga obviedades que só interessam àqueles que vêem seus rostos estampados num sorriso plástico. Quando será inventado um botox para enrijecer a ética e o caráter, atenuando as rugas da nossa falta de expressão?
Acredito que a paciência divina tem limites. Como Paulo lembrou aos romanos, “Deus age em todas as coisas para o bem dos que foram chamados com o seu propósito” (8.28). Por misericórdia dos que têm lido obviedades e tido os ouvidos flagelados pela música gospel, cuja qualidade remete ao cacófato da expressão, estou certo de que o panorama vai mudar. Antes mesmo de ser realizado, este evento já forneceu boas lufadas de ar fresco. De más lufadas estamos todos cheios...
Dia desses, postei uma frase legal do Ionesco, o maior expoente do teatro do absurdo. Disse o dramaturgo que “ideologias nos separam, sonhos e angústias nos unem”. Absurdos e idéias à parte, comungamos neste palco o desejo de ver esse cenário transformado.
Talvez seja o momento de recorrer a Santo Expedito, considerado especialista em causas urgentes. Contam que, prestes a se converter, apareceu-lhe um espírito do mal na forma de um corvo, grasnando "cras" - que em latim significa "amanhã". O cara pisoteou a ave, bradando "hodie", que significa "hoje". Irmãos editores, irmãos políticos, irmãos artistas o dia de deixar o berço esplêndido é hoje.
Temos à frente o desafio de deixarmos de ser evangélicos e novamente nos tornarmos protestantes. Antes de existir “arte cristã”, é preciso que tenhamos cristãos que honrem dignamente àquele que inspirou esse epíteto.
Não tenho dúvidas de que os pequenos frascos terão um papel preponderante ao apresentar ao mundo o bom aroma de Cristo, aludindo ao velho adágio. O evento de hoje corrobora minha tese. Este espaço físico não existiria se o sr. Pedro Herz tivesse conversado com alguns executivos evangélicos. Ele certamente não teria capitaneado a contínua expansão que a Livraria Cultura tem experimentado nos últimos 12 anos. Afinal, há quem atribua os revezes e insucessos ao público, mostrando que do ponto vista mercadológico somos bem pentecostais: falamos uma língua estranha aos consumidores.
É hora de repetir a oração musical de Amy Lee, a cristã vocalista da banda Evanescence: “Faça meu sangue correr, antes que eu me acabe, me salve do nada que eu me tornei”. “Quem tem ouvidos, ouça”, recomendou o Mestre diversas vezes.
O presbítero Chacrinha costumava dizer que “veio para confundir e não para explicar”. O Turner afirmou (pág. 29) que o artista cristão muitas vezes deve ser “aquele que irrita e inquieta”. Se de alguma forma minha curta incontinência verbal irritou ou inquietou vocês, o objetivo da minha reflexão foi alcançado e as minhas orações atendidas. Pela paciência e generosidade em ouvir minha diatribe, muito obrigado.
meu texto na abertura do debate no lançamento do livro Cristianismo criativo?, de Steve Turner. + fotos
6 comentários:
Olá, gostaria de parabenizá-lo pelo texto, belo e provocativo. Sou católico, mas me interesso pelo universo protestante/evangélico, em uma sincera esperança ecumênica. O seu blog é o reflexo da lucidez com que vc trata a dimensão religiosa. Abraço fraternal,
Mauricio.
Bem, vou discordar um pouco do texto. Conheci, em Paris, um artista cristão fantástico. Ele trabalha com litogravura e xilogravura. Seus temas são recorrentemente cristãos, abordados com beleza, profundidade e simplicidade. O cara tem talento!!!! Ele mora em Pelotas, chama-se Alexandre Lettnin e tem feito exposições mundo afora. Ele pode ser uma exceção, mas já é alguma coisa. Se alguém quiser conhecê-lo, está na minha lista de amigos, no Orkut (Mayalu Felix) -- "Alexx".
ah. se for pra citar os artistas que aqui e acolá a gente conhece, sempre tem um ou outro né?
claro, que quando se torna maioria, as coisas ficam meio estranhas. me parece que vanguarda sempre tem que estar meio às escuras e ficar famosa qnd o artista morre ou seilá oq. mas seria bom que existessem mais Alexxs. Axei o trabalho dele no orkut e realmente é interessante.
abraço's
Legal, semcor (?), você deu uma olhada no trabalho do Alexandre! Ele é muito bom! Vai longe! Que Deus o preserve. Concordo, deveria haver mais Alexxs por aqui, por aí...
Crio logo existo...
sei que meus dons foram
dados por Deus.
As Instituições Evangélicas premiam
apenas os parentes, para que os
dízimos sejam divididos
por pequenos grupos.
Isso creio porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice, aludindo as palavras de um sábio Criador.
Deus Gn 8:21)
Cristina
Puxa, obrigado Maya por teus commentários (!) que acabo de encontrar por aqui! Fico lisonjeado!
Bom, acho que ainda não fui muito longe, mas continuo na luta, pesquisando e produzindo arte...
Peço licença ao pavablog pra deixar meu contato aos leitores que gostariam de ver mais:
www.lettnin.blogspot.com
Continuemos a conversa sobre arte!
Fiquei curioso para ler o livro!
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