Cho Seng-Lui, estudante sul-coreano de 23 anos, antes de meter uma bala na própria cabeça assassinou 32 pessoas na Universidade Virgínia Tech, a 17 de abril. Não é a primeira vez que, nos EUA, estudante entra armado numa escola e dispara a esmo contra colegas. Eis o efeito deletério de uma cultura bélica. Milhões de crianças usamericanas brincam agora de assassinar bonequinhos virtuais em seus videogames, orgulhosas porque seus avôs lutaram no Vietnã e os pais no Iraque.
A mídia transformou o massacre de Virgínia numa comoção mundial. Isso é bom, educa a nossa sensibilidade para que episódios semelhantes sejam considerados hediondos. E com certeza faz refletir aqueles que, no Brasil, votaram a favor do comércio e o porte privado de armas.
Aliás, pesquisa da Clínica de Lesão Medular da Associação de Assistência à Criança Deficiente de São Paulo, entre 2002 e 2006, revela que a principal causa de lesões graves na medula, no Brasil, são armas de fogo: 41,24%. Os acidentes de carro ficaram em segundo lugar (32,68%).
Na mesma semana do massacre em Virgínia, a Justiça dos EUA soltou da prisão o terrorista Posada Carriles que, em 1976, mandou pelos ares 73 passageiros que viajavam a bordo do vôo da Cubana de Aviação, minutos após decolar do aeroporto de Barbados.
Exceto em Cuba e Venezuela, onde Carriles perpetrou inúmeros de seus crimes, a liberação do terrorista não produziu nenhum comoção. Nem o fato de a mesma Justiça usamericana manter nos cárceres de Miami cinco cubanos, presos há 4 anos por atuarem preventivamente contra eventuais ações terroristas promovidas pelos fundamentalistas da comunidade cubana ali residente.
Posada Carriles em liberdade e os cinco cubanos antiterroristas presos fazem lembrar o paradoxo do julgamento de Jesus. Era Páscoa em Jerusalém. Conforme o costume, o governador romano deveria conceder indulto a um prisioneiro. Na Fortaleza Antônia, Pilatos expôs o dilema à claque espalhada pelo pátio: “Jesus ou Barrabás?”
O aglomerado de pessoas sabia muito bem que a entrada lhe fora facultada no recinto oficial por ser confiável e não se atrever a contrariar o poder. Compunha-se desse tipo de gente que, perante autoridades, desparafusa a própria coluna vertebral e oscila qual boneco, para trás e para frente, dando seu acordo a tudo. A resposta foi uníssona: “Solte Barrabás!” O bandido ganhou liberdade. O Justo, após ser torturado, viu-se conduzido à morte na cruz.
Esperar que Bush puna Posada Carriles é querer Ali Babá à frente da repressão aos 40 ladrões! O que mais causa espanto é constatar a leniência da grande mídia, capaz de provocar comoção pela morte de 32 alunos e professores da Virgínia Tech e amenizar o impacto, na mesma semana, de 200 iraquianos assassinados pelas tropas invasoras dos EUA.
Nossa sensibilidade decorre dos valores assimilados. Um senhor de escravo não se incomodava com os gritos lancinantes emergidos da senzala, assim como nós, brasileiros, bebemos chope na calçada ocupada pelas mesas do bar sem nos sentir incomodados com o enxame de crianças de rua suplicando por esmola e comida.
Na minha infância e adolescência era inconcebível um jovem não ceder seu banco no ônibus a uma mulher ou pessoa mais idosa. Hoje, a indiferença é notória, agravada por uma presunçosa altivez de quem se julga feliz por ter chegado primeiro... É essa falta de ética que leva uma sociedade a clamar por redução da maioridade penal, em vez de aumento de vagas nas escolas e postos de trabalho. Joga-se gasolina para apagar o fogo...
No processo de incorporação de valores, a mídia exerce papel preponderante. Trata com desdém o bloqueio da Casa Branca à Cuba e, com indignação, o direito de Evo Morales e Chávez defenderem os interesses de seus países. E o silêncio cúmplice permite que os EUA mantenham Porto Rico – nação outrora soberana – anexada a seu território e transforme a base naval de Guantánamo em cárcere sem lei para supostos terroristas.
Que grau de comoção produziria a notícia de que uma base naval cubana se instalou, esta manhã, nas costas da Califórnia?
Frei Betto é escritor, autor de Batismo de sangue, entre outros livros.
18.5.07
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