Não consigo me livrar de sua morte. Eu tomo banho, e ela continua me rondando. Eu escovo os dentes, e ela está lá, um cabide onde ponho o casaco na entrada e saída das minhas conversas.
Eu faço amor, eu dou aula, e ela permanece inteira, vigilante. Já cumprimentei sua morte e ela não mudou de posição. Já chorei, já rezei, e ela não vai embora. Decidiu ficar comigo, sua morte, tenho que me acostumar. Assim como você se acostumou a andar de bengala em função da poliomielite da infância.
Sua morte não me pede nada, nem um prato de comida, não emite um som. Incomoda quem nos olha sem falar. Sou capaz de dar tudo para que ela falasse alguma coisa.
Não, longe de ofender sua morte, sua morte não me suja, não me incomoda; ela me desequilibra. Eu fico desnorteado, como quem tem pouca roupa para o inverno, como quem senta nas mãos enrugadas para se aquecer.
Estou sem saber onde é o meu lugar e não descobri a pergunta a fazer para retomar o esquadro. Sua morte não mudou a cidade, Porto Alegre continua como estava, o cais brincando em ressuscitar dinossauros, as ladeiras esperando a sombra como uma puta, a luz verde do outono. Como a luz é injusta sem seus cabelos crespos!
Sua morte mudou meu jeito de enxergar Porto Alegre. Não era grande amigo seu, talvez um conhecido amigo, mais amigo de seu irmão, Luís Augusto.
Vontade de me desculpar por estar escrevendo sobre você, não tinha esse direito. Sua morte não me torna importante, nem sublinhará o que passamos juntos. Mas sua morte me transforma repentinamente em seu familiar. A morte tem disso: de aproximar telepaticamente quem se viu uma ou duas vezes. A morte é a intimidade que deveríamos ter criado em vida.
Fizemos palestras juntos, você me convidou para falar de poesia no cursinho Anglo, li seus sonetos e ensaios, conheci seu filho de fotografia, nos encontramos em vestibulares. Somaremos umas quatorze horas lado a lado e alguns silêncios involuntários.
O que me assusta (de ternura) em sua morte é que você está nela rindo. Não me lembro de seu rosto tomado de severidade. Não o vi sofrendo - o câncer não derrubou sua vontade de levantar o pescoço.
Meu primeiro impulso é tomar da morte seus caninos da volta. Denunciar o furto. Ela poderia ter deixado o riso embrulhado numa gaveta. Não necessitava mexer na gargalhada que demorou 42 anos para soar límpida e segura.
Ah, sua morte é como a blusa de crochê. Daquelas feita pela avó em nossa cor preferida. Puxo um fio e ele não termina de se esconder novamente no conjunto. Fio ardiloso, fio caseiro, frio para dentro.
Começo a falar de sua morte e me bate uma urgência. Vontade de proteger meus filhos, de ser mais domingo quando chego do trabalho. Você morre e eu me apresso a existir. Sinto-me egoísta, porque sua morte me faz pensar em mim e assim esquecê-lo. Eu me defendo da minha morte em sua morte.
Você não podia morrer. Quanta orfandade em seu apartamento. Onde ficarão teus óculos, quem sofrerá do mesmo grau de miopia para empunhá-lo? E o time de botão? E os bilhetes em letra maiúscula? E a lista de chamada? E as chaves que brincava nos bolsos da calça?
Seu filhote, Alfredo, de 1 ano, terá que perguntar muito sobre você. Deixará espaço entre os ossos dos ombros para o livre trânsito de seu braço. Descobrirá como dividir as sílabas recordando de seu soluço. Ele nunca esquecerá que sua barba o arranhava. Nunca. Você será uma premonição na hora triste e uma lembrança na hora alegre.
Você não será um pai ausente, mas uma ausência paternal. Uma ausência abrasada, eu lhe garanto, querido Prego. Uma ausência que cuida. Uma ausência que entusiasma. Uma ausência que freqüentará seus sonhos com a pontualidade de quem o espera na escola. E, acima de tudo, seu filho não precisará inventá-lo. Você fez sua parte no amor.
Com todo afeto,
(Arte de Basquiat)
Um comentário:
Feliz postagem do mestre gaúcho Fabrício Carpinejar. Um dos meus poetas preferidos. Ótima referência!!!
Abraços.
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