Prezado amigo,
Escrevo-te porque fiquei consternado com tua carta. Sei do risco de ser impertinente, mas não pude me conter; sofri quando te imaginei sentado diante do computador com um semblante tão casmurro. Acho que, na verdade, tive uma visão tua. Vi teu cenho franzido, teus olhos fuzilando o mundo, tua face avermelhada de rancores e tive medo.
Sim, concordo que há momentos em que dá vontade de cuspir marimbondos, encher nossa escrita de asteriscos, deixar os escrúpulos de lado e gritar impropérios. Sim, concordo que o perverso ambiente social brasileiro se perpetua com oligarcas cínicos, que riem como hienas.
Sim, concordo que o clero do movimento evangélico se contentou em repetir dogmas engessados. Sim, concordo que o sucesso comercial das editoras estadunidenses é que forma o cânon da teologia evangélica.
Sim, concordo que o movimento evangélico já não responde aos questionamentos e às tensões de um mundo globalizado – com tantas sociedades complexas. Sim, concordo com tua radicalidade, mas não posso acompanhar-te em teu sectarismo.
Tu continuas enxergando o mundo pelas estreitas frestas de tua janela religiosa. Aconselho-te que a escancares para que contemples o universo que está além da tua verdade. Lembro-te que só conseguimos abarcar uma ínfima zona do saber; e que no oceano do conhecimento, por mais que nademos, jamais nos afastamos de suas praias rasas. Dou-te um poema de Carlos Drummond de Andrade de presente.
O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.
As pessoas são sectárias quando não aceitam que existam outras verdades e realidades para além do seu horizonte, do seu catecismo, do seu mapa, do seu espectro auditivo ou do que podem medir. Os sectários têm medo de ser livres e, portanto, buscam restringir o mundo; eles nunca querem perder o controle; a liberdade é sempre arriscada e todos os sectários são prudentes e lúcidos.
Não nego a tua indignação, mas discordo de tua intolerância. Acho que ela camufla o teu receio de enfrentar corajosamente um mundo tão maluco.
Tu sentes raiva de ver tanta injustiça não porque ames a justiça, mas porque temes que ela te destrua; tu discordas da miséria não porque a considere um ultraje à vida e ao próprio Deus, mas porque gera pessoas violentas que podem ameaçar a tua família; tu rejeitas o sofrimento universal não porque dizime inocentes (tu não acreditas que existam inocentes no mundo, não é?), mas porque tanta dor atrapalha tua busca de felicidade.
Tente ser radical, sem jamais deixar-te enroscar no sectarismo. Seja radical em defender a dignidade de homens e mulheres que espelham a Imago Dei (Imagem de Deus). Seja radical em desdenhar os senhores da guerra que fazem festa enquanto Roma arde em chamas. Seja radical em denunciar aqueles que perpetuam sistemas econômicos opressores. Seja radical em insistir em bater palmas para os que vão de bote contra um petroleiro que pode contaminar a praia.
Seja radical e não acredite que o futuro será a versão domesticada do presente ou do passado. Seja radical contra qualquer ideologia que tenta transformar "o futuro em algo preestabelecido, numa espécie de fado, de sina ou de destino irremediáveis" . Seja radical e não aceite o discurso reacionário de que precisamos domesticar o presente para termos um "futuro pré-datado ou fixado inexoravelmente".
Aconselho-te a ler a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. Ele poderá ajudar-te a entender a diferença entre o sectário e o radical.
É que a sectarização é sempre castradora, pelo fanatismo de que se nutre. A radicalização, pelo contrário, é sempre criadora, pela criticidade que a alimenta. Enquanto a sectarização é mítica, por isto, alienante, a radicalização é crítica, por isto libertadora. Libertadora porque, implicando o enraizamento que os homens fazem na opção que fizeram, os engaja cada vez mais no esforço de transformação da realidade concreta, objetiva .
Por fim, não tenha medo de dar um passo para fora de tua zona de conforto; lembra-te que os verdadeiros artesãos da história foram mulheres e homens que não se intimidaram com as correntes que lhes prendiam os pés.
Despeço-me, pedindo-te que medites em mais esta citação de Paulo Freire:
O radical, comprometido com a libertação dos homens, não se deixa prender em "círculos de segurança", nos quais aprisione também a realidade. Tão mais radical, quanto mais se inscreve nesta realidade, para, conhecendo-a melhor, melhor poder transformá-la. Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não teme o encontro com o povo. Não teme o diálogo com ele, de que resulta o crescente saber de ambos. Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens, nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para com eles lutar. Se a sectarização, como afirmamos é o próprio do reacionário, a radicalização é o próprio do revolucionário.
Abraços esperançosos,
Ricardo Gondim
Soli Deo Gloria.
16.6.07
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4 comentários:
Ricardo Gondim, servo de Deus, inteligência afiada, sensibilidade apurada, grande coração e compreensão profunda da Palavra e do universo que nos rodeia. Tem meu respeito e minha admiração.
Soli Deo Glória
Quanto ao verso de Carlos Drummond... o tatal invade o parcial; o eterno o temporal; o júbilo conquista a tristeza; o prazer vence o desconforto e a pobreza; a gratidão faz esquecer as fadigas.
No curto espaço de amar, o eterno, o sem fim se faz presente.
PENSAMENTOS...
"Todos devemos ser a mudança que queremos ver no mundo." (Mahatma Gadhi)
"Temos que fazer o melhor que pudermos. Essa é a nossa sagrada responsabilidade humana." (Albert Einstein)
"A solidariedade deve integrar nossas vidas. Como cidadãos, somos parte das soluções." (Raul Cutait)
ESCUTA, ZÉ NINGUÉM!
“(...) Esta é a hora primeira de um futuro maior, do fim de toda a forma de mediocridade. Porque entretanto o modo como age a peste emocional se foi tornando demasiado óbvio. Acusa a Polônia das intenções de agressão militar, depois de tomada a decisão de agredir a Polônia. Acusa o rival da intenção do crime depois de decidir eliminá-lo. Acusa de pornografia a vida sexual sã, porque tem em mente intenções pornográficas. Já te topamos, Zé Ninguém; vais-te tornando transparente sob tua fachada de desgraça a submissão. O que te é pedido é que determines o rumo do mundo com o teu trabalho e a tua realização — substituir uma forma de tirania por outra é que nunca. O que se te exige é que te submetas às leis da vida tal como quererias que os outros fizessem; que te modifiques à medida que os vais criticando. Cada vez é mais óbvia a tua tagarelice, a tua avidez, a tua irresponsabilidade — o mal de ti que conspurca toda a beleza da Terra. Sei que não te agrada o que ouves, que preferes berrar “Viva!”, que és bem capaz de parir o futuro do proletariado do IV Reich. Mas não é menor a minha convicção de que as coisas te vão sendo mais difíceis hoje que no passado — embora sejas ainda brutal sob a tua máscara de sociabilidade e gentileza, Zé Ninguém. Não acreditas? Deixe então que te refresque a memória:
Lembras-te da magnífica tarde em que vieste, como lenhador que eras, pedir trabalho à minha cabana na montanha? Depois de farejar-te, o meu cachorro saltou-te aos joelhos. Viste que era cão de boa raça e disseste então: “Devia amarrá-lo para se fazer bravo. O cão é manso demais.” Ao que te respondi: “Eu não quero ter uma fera amarrada com correntes. Não gosto de cães raivosos.” Ah, lenhador, tenho bem mais inimigos do que tu, mas continuo a preferir o meu majestoso cão, meigo com toda gente.
Lembras-te do domingo chuvoso em que a angústia perante o fenômeno da tua rigidez biológica me levou a sair de casa, largando o trabalho, para me enfiar num dos teus bares? Sentei-me a uma mesa e pedi um uísque (não, Zé Ninguém, não sou alcoólico, embora goste de beber de vez em quando). Ia, pois, bebendo o meu copo quando te ouvi, no teu paleio de recém-desmobilizado, descrever os Japoneses como “macacos horrendos”. E foi então que afirmaste, com a expressão facial que eu tão bem conheço do meu trabalho terapêutico: “Vocês sabem o que a malta devia fazer com os Japoneses da costa ocidental? Estrangulá-los todos, um por um, mas devagar, lentamente, apertar-lhes o garrote a pouco e pouco, assim...”, e ias fazendo o gesto com as mãos, Zé Ninguém. O criado apoiava-te, fazia que sim em admiração perante a tua heróica masculinidade. Já alguma vez tiveste um bebê recém-nascido nos braços, patriota de m...? Durante muitas décadas continuarás ainda a estrangular espiões japoneses, aviadores americanos, camponeses russos, oficiais alemães, anarquistas ingleses e comunistas gregos — hás-de fuzila-los, condená-los à cadeira elétrica, às câmaras de gás —, o que em nada irá alterar a tua prisão de ventre generalizada, a tua incapacidade de amar, o teu reumatismo ou a tua doença mental. Não serão os crimes que possas cometer que irão arrancar-te do lameiro. Olha para ti, Zé Ninguém. É a tua única esperança.
(...) A única coisa capaz de conquistar-te será o teu sentido de pureza, a tua aspiração à verdadeira vida — e quanto a isso, não tenho a menor dúvida. Uma vez superada a tua mediocridade e mesquinhez, começarás a pensar — de início, sem dúvida, errática, ridícula e erroneamente, mas pensarás com seriedade. Terás de aprender a superar a dor que todo esforço de pensamento comporta em si mesmo, tal como eu e outros suportamos a pena de pensar-te — durante anos, em silêncio, de dentes cerrados. Esta nossa dor far-te-á pensar. E quando começares a fazê-lo sentirás a magnitude do absurdo dos teus quatro milênios de “civilização”. Ser-te-á difícil entender como foi possível que os teus jornais nada mais tivessem a relatar e comentar que paradas sem sentido, condecorações, crimes, enforcamentos, diplomacias, calúnias, mobilizações, pactos, bombardeamentos — e que não tenhas nunca reagido com agressividade ou te tenhas sequer apercebido do perigo que corrias. Talvez te houvesse sido possível entenderes-te a ti próprio se não tivesses engolido bovinamente tudo o que te caía nas mãos. Mas o que deveras te será difícil é a verificação do fato de que tudo foste macaqueando e papagueando através dos séculos; o fato de que o que no teu íntimo acharas certo o era realmente, e que tomaste por patrióticos os teus erros. Terás vergonha do que fizeste, e nisso reside a única esperança de que os nossos bisnetos não venham a ser obrigados a ler a tua história militar. E não mais será possível a montagem duma grande revolução apenas para por em cena um novo “Pedro, o Grande”. (...).
(...) Quererás agora ouvir-me?
“Vamos a isso, porque é que eu não hei-de dar ouvidos a mais uma utopiazinha? Não há nada a fazer, meu caro doutor — sou e continuarei a ser um pobre diabo, o homem da rua, que não tem opinião própria. Aliás, quem sou eu para...”
Ouve. Escondes-te detrás da lenda do Zé Ninguém, porque tens medo de mergulhar e de ter de nadar no grande rio da vida, quanto mais não seja em nome dos teus filhos. A primeira de todas as coisas que não mais farás será consentir na percepção de ti próprio como sujeito insignificante e sem opinião, que afirma a todo momento “mas quem sou eu...”. Tu tens a tua opinião própria e no futuro que prevejo passarás a considerar como vergonha não a conheceres, não a defenderes, não a expressares.
Wilhelm Reich
Escuta, Zé Ninguém!
Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Portugal, abril de 1982; primeira edição: maio de 1972.
Trechos retirados das páginas 91, 92, 97, 98, 100 e 101.
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