26.8.07

A ciência contra Deus

Sacerdotes e cientistas mantiveram, durante um bom tempo, certas normas de convivência pacífica: salvo as exceções mais radicais, um não se metia com os assuntos do outro. Hipocrisia, afirma o biólogo Richard Dawkins no corajoso e furibundo "Deus, um Delírio".

Dawkins inicia sua forte argumentação em favor do ateísmo assinalando que a maior parte dos cientistas, inclusive o físico alemão Albert Einstein (1879-1955), cuidava de fazer vagas profissões de fé deístas apenas para não chocar os espíritos religiosos. Acreditar num "Deus que não joga dados", como formulado na famosa frase de Einstein, equivale muito mais a confiar nas regularidades das leis da natureza do que a afirmar qualquer coisa próxima de uma religião.

Acontece que os esforços no sentido de separar ciência e fé, Estado laico e convicção religiosa, foram sendo solapados ultimamente. Nos Estados Unidos, ganha especial virulência a campanha contra o darwinismo, levada por fundamentalistas bíblicos e adeptos da teoria do design inteligente.

Entre os muçulmanos, quaisquer críticas à religião encontram as respostas que se conhecem -e Dawkins faz um relato aterrorizante das reações suscitadas, mesmo entre grupos não-fundamentalistas, pelas célebres charges sobre Maomé inicialmente publicadas por um jornal dinamarquês. Do lado católico, o papa Bento 16 está longe de se mostrar tímido e conformado com o papel da razão iluminista nas sociedades ocidentais.

Verdade que o próprio darwinismo procura conquistar novas áreas de influência, seja na prática (com o desenvolvimento das pesquisas sobre o genoma), seja na teoria (descobrindo razões biológicas para muito do que se acreditava pertencer à ordem da psicanálise ou da cultura).

O livro de Dawkins surge nesse contexto como uma espécie de grito de guerra, de chamado à mobilização geral. Basta, diz ele, de respeitar um conjunto de crenças que não é apenas improvável, como profundamente tolo e nocivo ao bem-estar humano. Basta de "respeitar" a irracionalidade alheia. Os ateus esconderam-se tempo demais nas catacumbas. Perseguidos, estigmatizados, envergonhados, cabe-lhes assumir a iniciativa do debate intelectual.

Não é suficiente para Dawkins que se declarem "agnósticos" -e, na discussão desse termo, localiza-se talvez o ponto mais incisivo e original de sua argumentação. Um agnóstico, explica o autor, considera impossível responder se Deus existe ou não. Seja porque não surgiram até hoje provas convincentes de sua existência, seja porque essas provas seriam a rigor impossíveis de obter.

Com efeito, pelo menos desde Kant (1724-1804), uma série de supostas "provas racionais" da existência de Deus mostrou-se incapaz de resistir a um exame rigoroso; Dawkins dedica um capítulo de seu livro a um sumário e feroz resumo desses debates. A posição agnóstica não basta, contudo, para Dawkins. O cientista agnóstico se contenta em deixar a questão sobre a existência de Deus no campo das coisas que não lhe dizem respeito. "Deus, um delírio" apresenta um argumento destinado a lançar a existência de Deus no campo das improbabilidades quase absolutas. Um dos argumentos preferidos pelos criacionistas é o de que o acaso, por si só, não seria capaz de produzir coisas tão complexas quanto um olho humano ou a asa de uma borboleta. O surgimento de tais maravilhas a partir do acaso seria tão improvável, dizem os criacionistas, quanto imaginar que um furacão, passando por cima de um ferro-velho, montasse peça por peça um Boeing 747.

Dawkins refuta a tese de modo convincente. Asas de borboleta e olhos humanos não surgem "prontos" na natureza, a partir de uma combinação aleatória de moléculas. Os darwinistas não acreditam que tais coisas nasceram por acaso, e sim da seleção natural. Mostram como organismos complexos evoluíram, pouco a pouco, a partir de formas de vida muito simples. E isso, diz o autor, é muito mais provável do que imaginar um "criador inteligente". Pois para projetar um Boeing é preciso ser um bocado mais complexo do que um Boeing. E, para repetir uma objeção clássica à idéia de Deus, fica a pergunta: "Quem teria criado o criador?" Um outro ser, ainda mais complexo do que ele?

Com boa variedade de exemplos e clareza expositiva, "Deus, um delírio" teria tudo para fazer a alegria de espíritos céticos ou ateus, como o deste resenhista. Mas o que sobra a Dawkins de inteligência científica parece lhe faltar de inteligência emocional. Há mais exasperação do que ironia, mais precipitação do que serenidade, no modo com que ele encaminha a discussão. Dawkins consegue chocar profundamente, com piadas brutais, algumas sensibilidades religiosas, sem ganhar a simpatia dos que concordam com seu ponto de vista.

Foi-se o tempo em que filósofos descrentes podiam brincar, com superioridade anglo-saxônica, a respeito de crendices religiosas. As diversas citações de Bertrand Russell, de H. L. Mencken e mesmo de Woody Allen, que volta e meia aparecem em "Deus, um Delírio", são como que deliciosos remanescentes de outra era geológica, em que a ciência não se sentia tão acuada e perseguida.

Criticava-se com verve e paz de espírito; este panfleto evolucionista, embora sólido cientificamente, parece debater-se e gesticular como uma fera aprisionada em sua jaula. Mas vale a pena ouvir seus urros: neles está, ai de nós, a voz da Razão.

Marcelo Coelho, na Folha de S.Paulo.

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