11.8.07

O evangelho de Borges

Muito antes de me render de uma vez por todas à persuasão de Jesus, há cerca de dez anos, fui tocado irresistivelmente pelo evangelho segundo a obra do maior escritor menor de todos os tempos: o argentino universal Jorge Luis Borges.

Neste mundo a beleza é comum.

A boa nova de Borges é despretensiosa e transparente, o que não deixa de ser notável num escritor que é lugar comum descrever como labiríntico. Sua expressão mais contundente, que eu saiba, encontra-se nesta declaração: “Espero que o leitor descubra em minhas páginas algo que possa merecer sua memória; neste mundo a beleza é comum.”

De todas as frases, de todos os livros, de todas as páginas, de todas as épocas, não há frase que eu gostaria de ter escrito mais do que essa: neste mundo a beleza é comum.

Não há sensatez maior, nem visão de mundo que mais se alinhe à dos evangelhos.

Borges cria que os parágrafos mais incompetentes, as poesias mais desajeitadas e as traduções mais distraídas não são imunes à beleza. Borges cria que a maior expressão de toda filosofia e de toda metafísica encontra-se nas narrativas do gênero menor que é a literatura fantástica. Borges cria que o melhor da produção literária da humanidade circulou como moeda comum muito antes de chegar a repousar entre capas duras: as lendas japonesas, os contos das mil e uma noites, as sagas nórdicas. Borges cria – perceba a horrenda ousadia, o impensável contrasenso – que a beleza é comum.

Um cego que enxergava a beleza em todo lugar – a imagem é tão piegas que não é impossível que seja capaz de nos desarmar.

Pois o evangelho de Borges, sua boa nova, é que neste mundo não há como escapar à beleza. Para onde fugirei da sua face? Se eu subir ao céu, lá a beleza está; se eu fizer no inferno a minha cama, ali ela está também. Se tomar as asas da alva, se habitar nas extremidades do mar – não há como se evadir ao seu regime. Salomão foi um sujeito elegante, mas nunca, jamais, em todo seu esplendor, chegou perto de ameaçar a carreira do mais rastaqüera lírio do campo.

É a velha boa nova do Reino, com que Jesus fendia nossas mais ternas convicções de que o mundo é uma ameaça e a felicidade uma pérola que poucos chegam a conhecer.
Deus não cessa de fazer o bem, blasfemava Jesus. Nada tem como dar errado. Nada. Não vos preocupeis com o dia de amanhã. Se vocês que são maus sabem dar aos seus filhos coisas boas, quanto mais o papai do céu. O mundo é um lugar insuportavelmente belo e seguro embalado pelo amor do Pai.

Diante disso restou ao monge, também citado incessantemente por Borges, suplicar: “Ah, Senhor, que não haja tanta beleza!” – que é, naturalmente, a segunda frase que eu mais desejaria ter escrito. Mas recolho-me e me conformo, não sem um sorriso. Num mundo em que a beleza é coisa rasteira deve haver frase melhor aguardando numa conversa de botequim, num capítulo de novela, num blog anônimo que não ocorre há meses a seu autor perder tempo para atualizar.

Paulo Brabo, no blog Bacia das Almas.

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