4.8.07

O homem que filmou a alma

Na segunda, 30 de julho, Ingmar Bergman, cineasta sueco, transvivenciou, aos 89 anos. Com a sua morte, apaga-se um olhar, uma luz, o relâmpago que nos permitia decifrar, entre gritos e sussurros, a hora do amor, e também a hora do lobo.

Ao ver o mundo não o fazemos de igual modo. Depende das lentes que se escondem atrás dos olhos. Há olhos límpidos que encobrem diabólicos visionários; outros, sombrios, guardam aguda lucidez. A miopia, antes de ser uma anomalia do globo ocular, é uma deformação da mente. Só se conhece bem uma pessoa quando se desvenda a sua ótica das coisas.

Por detrás dos olhos bem abertos de Bergman alojavam-se o filósofo Sören Kierkegaard e o psiquiatra Carl Jung, dois intelectuais angustiados, como o profeta Elias, pelo silêncio de Deus. Kierkegaard quebrou o monopólio da razão ao introduzir na pauta filosófica as inquietações do coração. Jung transcendeu a pedra angular do racionalismo científico revelando a sintonia holística e religiosa do inconsciente.

Assisti a quase todos os filmes de Bergman, cujos olhos centraram-se mais na Terra que no céu, no ser humano que no divino, nos mistérios da alma que nas incongruências das relações sociais. Ele fez da subjetividade a matéria-prima de sua arte, sem jamais ceder ao psicologismo barato. Sua linguagem estética revolucionou, no cinema, as estéticas da linguagem e da imagem.

Três de seus filmes me marcaram de modo especial: Morangos Silvestres (1957); O Silêncio (1963); e O Ovo da Serpente (1977). O primeiro descreve a viagem do médico Isak Borg (mesmas iniciais do diretor do filme...) de Estocolmo a Lünd, durante a qual se mesclam, na cabeça do personagem, as esferas real e onírica. A memória é o ponto de ligação entre as duas. Como um Brás Cubas sueco, desprovido de humor e amor, o médico resgata sua infância e juventude, e se descobre condenado ao desamor.

O Silêncio finaliza a trilogia iniciada com Através de um Espelho (1960) e Luz de Inverno (1962). Trata da incomunicabilidade entre duas irmãs que viajam em companhia do filho de uma delas. Ao som de Bach, emerge o vazio existencial de suas vidas, o apego à sensualidade, a mediocridade de quem se nega a reconhecer a natureza substantiva da existência para se deixar levar por meros adereços periféricos. Com muita dificuldade elas conseguem balbuciar a palavra ‘alma’.

O Ovo da Serpente é a história de um refugiado de guerra, desempregado, que encontra abrigo no apartamento de um cientista e, aos poucos, decifra o enigma do suicídio de seu irmão. Retrata a Berlim de 1923, quando já se podia vislumbrar, dentro da membrana transparente do ovo, o monstro nazista prestes a quebrar a casca. Diante dos indícios de que emerge uma nova era de atrocidades, o padre admite que talvez Deus esteja distante, só lhe resta pedir perdão por sentir indiferença e medo diante da realidade.

De certo modo, ajudamos a chocar o ovo da serpente quando a nossa indignação frente à realidade, paralisada pela indiferença e o medo, guarda-se nesse silêncio amargo que nos impede saborear o que a vida tem de melhor, como os morangos silvestres.

Frei Betto é escritor, autor de “Típicos tipos – perfis literários” (A Girafa), entre outros livros.

Um comentário:

Ricardo [DIVERSITÀ] disse...

=/

http://diversita.blogspot.com/2007/07/dos-meus-primeiros-meses-de-formao.html

bergman...bergman. me ensinou o que era cinema autoral, de alma, espírito e corpo (ou imagem...)

abraço's

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