11.8.07

Observações de uma viagem

Depois de 24 anos desembarco outra vez no aeroporto de La Maiquetia , a 30 quilômetros de Caracas, agora com nova, ampla e moderna estação de passageiros. Viajei pela VARIG, via Manaus, com um avião lotado de atletas que participaram dos Jogos Pan-Americanos e de representantes ao Encontro Latino-Americano da Renovação Carismática Católica (que reuniu, em São Paulo, 40 mil pessoas).

São mais de uma hora da manhã, e temo não ter ninguém me esperando, conhecendo que os venezuelanos, como os caribenhos hispânicos em geral, têm um conceito, digamos, "elástico" do tempo (junto deles os baianos são suíços...). Mas, lá estava como uma placa um cartaz da "Cúpula Social", um solícito funcionário do Ministério das Relações Exteriores, com um carro oficial para me conduzir ao Caracas Hilton Hotel, local do evento.

Na sessão de abertura da "VI Cumbre", no Teatro Teresa Careño, ouço o Coral (300 vozes) e a Orquestra Sinfônica Infanto-Juvenil, antes da execução do Hino Nacional, tocar a mais popular canção folclórica do país: "Alma Llanera" ("Com claveles de pasíon! Com claveles de pasión!"), me fazendo lembrar quando cantava a mesma nas festas nacionais como aluno do Instituto de Cultura Hispânica (hoje Instituto Cervantes/Casa de España), nos idos de 1961-1962.

Faço uma retrospectiva mental da História da Venezuela, cuja política acompanho há tantos anos: as lutas vitoriosas lideradas por Simon Bolívar (junto com o pernambucano Abreu e Lima) nas primeiras décadas do século XIX; a expulsão de Bolívar pelas oligarquias locais, que travariam, por muitos anos, feroz luta entre si pelo controle do poder, com exércitos particulares de jagunços; a presidência de Castro, aí pelos 1890, tentando construir um Estado Nacional e "falar grosso" com as multinacionais de petróleo norte-americanas que começavam a chegar (na época da política do "big stick", quando os EUA invadiram várias vezes países da América Central e Caribe e "criaram" o Panamá, até então uma província da Colômbia), a sua deposição pelo vice-presidente, que, com o apoio dos EUA e das Forças Armadas, impõe uma ditadura de 27 anos; a emergência de um setor mais esclarecido das oligarquias e das novas classes médias, que fundam dois partidos de inspiração européia: a Acción Democrática (AD), social-democrata, e a COPEI, democrata-cristã; a eleição de um intelectual nacionalista e progressista, o escritor Rômulo Gallegos, após a Segunda Guerra, pela AD, deposto por um golpe militar das oligarquias, com o apoio dos EUA; a ditadura do general Rojas Pinilla nos anos 50-60.

A riqueza do petróleo é apropriada (e esbanjada) pelas oligarquias, com a exclusão das massas do interior e das periferias das grandes cidades (+ de 60% da população), a corrupção esvaziou a autoridade dos partidos AD e COPEI e esfrangalhou o Estado. A tentativa de golpe frustrada dos jovens oficiais (presos e, posteriormente, anistiados). A eleição, por fim, de um deles, o coronel Hugo Rafael Chávez Frias, para a Presidência da República.

Compro os principais jornais, e os mesmos fazem uma dura oposição ao presidente Chávez. Ligo os principais canais de televisão, e nunca vi crítica tão cerrada a um presidente da República. Os motoristas de táxi (malufistas no Brasil) são também contra, porque em todo o mundo tendem a ser de direita.

Os canais de televisão públicos abrem espaços para os movimentos sociais e discutem todo o tipo de tema. Percebe-se um país politizado e com ampla liberdade de expressão, afinal o Presidente foi eleito e governa dentro do marco constitucional. Fiquei comparando com a nossa despolitização (cachaça, futebol, sexo, novela e novena/despacho/descarrego, alienantes).

As oposições a Chávez cometeram dois graves erros políticos (hoje fazem autocrítica): primeiro tentaram derrubá-lo com um golpe de Estado liderada por cerca de 100 generais, almirantes e brigadeiros, com o apoio das oligarquias, do governo americano e da hierarquia da Igreja Católica Romana (ele ficou preso alguns dias em uma ilha e voltou nos braços do povo, que saiu aos milhões às ruas, enquanto os soldados não obedeciam as ordens para atirar nos manifestantes).

Esses oficiais foram para a reserva, abrindo caminho para os jovens oficiais, que reformularam os currículos e a doutrina das escolas militares; em segundo lugar, resolveram boicotar as últimas eleições, crendo que com menos de 50% dos eleitores acorrendo às urnas, o presidente Chávez perderia a legitimidade. O povo votou em massa nos partidos da base aliada do governo (hoje há apenas um Governador e um Prefeito da oposição). Chávez consolida a sua "Revolução Bolivariana".

O que ele fez foi afirmar a soberania nacional, defender a integração latino-americana e dos povos periféricos, emprestar um novo papel às Forças Armadas cidadãs (o excedente reservista presta, por alguns meses, serviço alternativo junto às populações carentes), canalizando parte do lucro do petróleo para o social.

Contrata 20.000 médicos, dentistas e enfermeiros cubanos e instala postos de saúde em tudo que é povoado e favela, centros regionais de multidiagnóstico e hospitais regionais; amplia a rede de escolas pública, com cursos de alfabetização de adultos e cursos profissionalizantes; usa a arte e os esportes para tirar os jovens da marginalidade; faz uma reforma agrária, com uma política agrícola de fomento tecnológico, apoio ao cooperativismo e abertura de inúmeras escolas agro-técnicas; estimula os conselhos de moradores e as ONG's, dá voz e vez aos excluídos e governa com quadros dirigentes os mais jovens.

O país se divide: as eleições são sempre 60% a 40%, e seu índice de aprovação hoje é de 63%. A maioria dos partidos que o apóiam estão se fundindo em uma nova agremiação: o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV).

Não conheço nenhum governo na América Latina que esteja realizando processo de inclusão social de tamanha envergadura. O que ele faz lá é o que todos esperávamos que Lula fizesse aqui. Por aqui com as emissoras de rádio nas mãos dos políticos (lá rádios comunitárias) e as televisões nas mãos de umas poucas famílias, fala-se em "liberdade de expressão", pois sim...

Percebo no mundo hispânico um claro conflito entre os governos progressistas e as hierarquias conservadoras da Igreja de Roma (que, ao contrário da brasileira, permaneceram apoiando os regimes militares dos anos 60-80). Na "VI Cumbre" percebi que se conhece o Protestantismo Liberal (por causa da Europa e dos EUA) e o Neo/Pós/Pseudo-Pentecostalismo, que é alvo de pesquisas como algo meio "pitoresco". Protestantismo Evangélico e Pentecostalismo Clássico não se conhece. Em alguns países do continente a presença protestante é recente e reduzida.

No domingo, dia 05.08, cerca de 35 oradores internacionais da "VI Cumbre" fomos recebidos, juntamente com os embaixadores do Brasil, Equador, Argentina, Uruguai e Guiana, no Palácio Presidencial de Miraflores, para um lanche e para participarmos do programa televisivo interativo semanal "Alô Presidente!", quando Chávez discute temas da atualidade, presta contas das suas ações de governo, e responde a perguntas e críticas com telefone aberto, em um processo de comunicação direta com o povo. Ele tem a cara e o jeito do povão, fala a sua linguagem, mas é, ao mesmo tempo, um leitor voraz, dono de uma cultura invejável. Por seu estilo contundente está fadado a fazer admiradores e granjear o ódio dos detratores.

Mas, a História não está fechada; ela está se movendo, inquieta, criativa, incontrolável, pois os impérios e os sistemas não são eternos; eterno é o Senhor da História.

Um outro funcionário do Ministério das Relações Exteriores leva para La Maiquetia, para minha viagem de regresso ao Brasil, um Bispo, um cientista político e um militante bem mais animado do que quando chegou. A Justiça Social não somente é necessária; ela é possível!

Dom Robinson Cavalcanti, bispo anglicano

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