Tudo começou quando os longos cabelos cor de mel e os olhos negros e rasgados de Mônica Veloso se transformaram em uma boca que se abriu para soltar cobras e lagartos. O mundo do senador Renan Calheiros, presidente do Senado, começou a ruir.
Do alto da postura de homem público no topo da carreira, a mídia foi apresentando aos olhos da sociedade acusações de adultério, que teve como conseqüência o nascimento de uma filha, desvio de dinheiro, sonegação de impostos, fazendas reais com custos fictícios, criação de gado etc.
Hoje Renan Calheiros é um homem acuado, com a quebra do sigilo bancário autorizada pelo Supremo Tribunal Federal, à espera do momento - que chegará cedo ou tarde – em que terá de renunciar ao cargo de Presidente do Senado.
Já foi instado a isso dezenas, centenas de vezes, por correligionários e amigos, mas recusa-se. Prefere a “fritura” lenta e gradual, alegando incessantemente inocência de tudo que o acusam.
Em sua última declaração a um jornal de grande circulação, o senador resolveu elaborar fundamentação teológica para sua atitude imperturbável diante das acusações que sobre ele se abatem e da devassa que revira sua vida pelo avesso. Diz que não teme nada, apenas a Deus.
Toca o senador, com sua declaração, em ponto sensível da fé bíblica e da tradição judaico-cristã. O temor de Deus aparece várias vezes no Antigo Testamento, mencionado sobretudo nos livros sapienciais. O temor do Senhor é virtude do sábio e do verdadeiro israelita. Mas não se trata do pavor irracional frente a um Deus que pode a qualquer momento acionar seu braço forte e castigar terrivelmente a criatura em pecado.
Temer a Deus é ter-lhe respeito, reverência, que vem de uma apreciação de sua diferença totalmente outra. Ele é santo e eu não. É inteiramente justo, poderoso, misericordioso e eu não. Não consigo abarcá-lo com minha razão nem manipulá-lo à minha vontade. Diante dele só posso dobrar os joelhos e adorar.
Tão fundamental para a vida de fé é o temor do Senhor que o livro dos Provérbios diz que ele é fonte de vida e evita os laços damorte. (14,27) e que é o princípio da sabedoria (1,7). O Novo Testamento resgata essa virtude que faz o ser humano apalpar seus limites e conhecer seu verdadeiro lugar.
É com sempre vivo espanto que os cristãos vêem nos Evangelhos Jesus de Nazaré, o Santo de Deus, rezando e suando sangue diante de um Deus feito apenas silêncio no umbral da Paixão. Diante do silêncio do Pai que sempre o ouvia, Jesus aceita a vontade que não decifra mas na qual confia.
Os primeiros cristãos também valorizam essa virtude que é fonte de santificação e proclama a primazia de Deus sobre tudo e todos. A Ele é preciso obedecer antes que aos homens, com amor reverente e transido de respeito. Pois qualquer transgressão a essa atitude é terrível, não porque Deus se vingue cruelmente, mas porque o ser humano se afasta da verdade e cai no reino da mentira, onde já não sabe nem mesmo quem é e para onde vai.
Não é à toa que o evangelho de João coloca na boca do próprio Jesus a denominação do demônio como “o pai da mentira”. A Igreja instituiu o temor de Deus entre os sete dons do Espírito Santo e afirma que aqueles que são batizados e confirmados o recebem como graça viva e atuante que os guiará no caminho do bem e da verdade.
É coisa séria, portanto, o temor de Deus. Séria igualmente a afirmação de que a nada se teme, mas somente a Deus. Trata-se de afirmar diante do mundo seu propósito de andar puramente na verdade, sem concessões à mentira e ao engano. E colocar-se em total disponibilidade para que isso seja verificado pelos outros.
Tomara que o senador Renan Calheiros fale sério quando diz que só teme a Deus. Se assim for, sua inocência acabará por ser provada, em qualquer momento e de qualquer forma. Se assim não for, o Brasil terá de assistir mais uma vez ao triste espetáculo de uma ópera bufa envolvendo seus homens públicos como protagonistas e onde a grande vítima, como sempre e mais que nunca, é o sofrido e tão enganado povo brasileiro.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
12.8.07
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