Mais gordo do que magro, meio careca e meio cabeludo (careca na frente e cabeludo atrás), mais baixo do que alto, comia cebola crua para cultivar a voz de barítono que o tornara orador sacro famoso - o mais famoso desde o Padre Vieira que também andara pelo Maranhão e fora considerado pelo poeta Fernando Pessoa "o imperador da nossa língua".
A fama era tal e tanta que o bispo decidiu averiguar se tudo o que ouvia a respeito daquele padre era verdade. A pretexto de fazer uma visita pastoral, deslocou-se até Capão Redondo, nos confins do Estado, hospedou-se num velho convento de lazaristas e avisou ao padre que no domingo iria ouvi-lo no sermão da missa das 10h -a mais freqüentada da região, vinha gente de longe, que andava léguas a pé, para buscar edificação e virtude na oratória que todos comparavam- já foi dito- à do Padre Vieira, imperador da língua no dizer de Fernando Pessoa.
No domingo seguinte, por sinal um domingo da qüinquagésima, o bispo sentou-se numa cadeira forrada com veludo vermelho, à esquerda do altar, e aguardou a leitura do evangelho do dia, após o qual teria a oportunidade de verificar a fama e a eficácia do orador que todos comparavam ao Padre Vieira, imperador de nossa língua.
Para falar a verdade, foi um sucesso, uma apoteose. A igreja botando fiéis pelo ladrão, gente do lado de fora, os alto-falantes levando a poderosa voz de barítono, azeitada pelo uso constante da cebola crua, conclamando o povo de Deus a levar uma vida piedosa, repudiando o Diabo, o Mundo e a Carne, dentro dos seculares ensinamentos da Santa Madre Igreja.Mal terminou o sermão, o bispo assistiu a um espetáculo que nunca imaginara ver: a multidão invadiu o altar, levantou o orador e o carregou nos ombros, em triunfo, numa consagração que nem o Padre Vieira -imperador de nossa língua- tivera em seus dias maranhenses.
Os fiéis levaram o padre pela nave central, carregaram-no como um herói pela praça principal da cidade, todos o aclamavam com um entusiasmo que o bispo nunca vira igual. Depois de dar voltas na praça, o povo depositou o orador diante do bispo, que ficara estatelado em sua cadeira coberta de veludo vermelho, meditando em silêncio sobre tudo aquilo que acabara de ouvir e ver.
Afogueado, enxugando o suor da testa que produzira o sermão da qüinquagésima, o padre quis saber se o bispo gostara da veemência que levara o povo de Deus ao delírio. O bispo disse que sim. Não bastou.O padre quis saber qual o trecho que mais impressionara o seu superior, a passagem que mais o edificara. O bispo foi sincero: "Padre, o que mais gostei foi quando senhor mandou o diabo para a puta que o pariu e o povo urrou de contentamento".
Lembrei essa piedosa história que li há tempos, num livro de memórias de um dos fiéis presentes àquele memorável dia de Capão Redondo, autor que mais tarde chegou a prefeito e a deputado federal pelo Maranhão. Não cito os nomes para não comprometer o padre, o bispo e o deputado.
O motivo da lembrança é a atual unanimidade da mídia a respeito de tudo o que está acontecendo na vida pública nacional. Mensalões federal e estadual (em Minas), ex-gestantes posando para revistas especializadas, senadores absolvendo o colega presidente, o outro presidente (da República) procurando o seu amigo Bush, entre outras coisas para mostrar que não sabe de nada do que está havendo com os seus amigos daqui, tudo isso junto e multiplicado pelo que ainda não se sabe, forma um Diabo de tamanho família, bem maior e nefasto do que o pobre diabo que aprendemos a temer nos dias de catecismo.
A diferença, a nosso favor, é que não há apenas um pobre vigário do interior, cheirando a cebola, apostrofando esse diabo que nenhuma água benta, nenhum sermão por mais veemente conseguem fazer o Pai das Trevas retornar às trevas de onde saiu para infernizar a nossa vida.
Não cheguei ainda a ler ou a ouvir nenhum comentarista da praça, cheirando ou não cheirando a cebola, em sua exaltada condenação a tudo o que está havendo entre nós, mandar alguém àquele lugar que fez o povo de Capão Redondo invadir o altar e erguer o orador em triunfo. Talvez seja precipitação minha. Esse dia chegará.
Carlos Heitor Cony, na Folha de S.Paulo.
28.9.07
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