29.9.07

Teus ombros suportam o mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue,
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
.
Carlos Drummond de Andrade
foto: Sebastião Salgado

Um comentário:

`:_(°)~ Mεnos έ Mąis ~(°)_:´ disse...

Nesse caminho frio só a solidão do que não fomos nos acompanha.
E a certeza da derrota permanece.
Por que não acordar das trevas e resplandecer a luz?
A falência de que não saíremos vivos e o conformismo de que nunca seremos é mais do que latente.
Pulsa o ar lá fora mas prefiro minhas misérias.
Pra que viver? Estou morto mesmo.

Blog Widget by LinkWithin