Neste Dia da Criança, vou ao encontro daquela que ainda sobrevive em mim. Ela não é desse tempo de atrocidades. Não que o mundo fosse melhor. Não era, nem mesmo para as crianças. Muitas trabalhavam arduamente nas lavouras, sangravam a infância revirando latas de lixo, brotavam aos borbotões, em plena metade do século XX, das páginas memoráveis de Charles Dickens.
O diferente é que o mundo era longe de minha aldeia abrigada entre montanhas. E eu não tinha idéia de que o sofrimento não atingia apenas adultos...
Fui uma criança nem rica nem pobre; feliz. Meus pares de sapato eram dois, o da escola e o de missas dominicais e aniversários. O divertido, porém, era andar descalço na lama deixada pelas chuvas, enfiar as pernas na enxurrada lavando ladeiras, sentir na sola dos pés a cócega áspera dos paralelepípedos que cobriam as ruas de Belo Horizonte.
A falta de brinquedos industrializados, caros e raros, estimulava-nos a criatividade. Com a mente povoada pelos contos dos irmãos Grimm e as histórias de Hans Christian Andersen, de um cabo de vassoura nascia um cavalo; de uma tábua e quatro rolimãs, um carrinho; de um caixote, um castelo; de um pedaço de chumbo derretido, o imbatível exército dos soldadinhos de Napoleão...
As narrativas de Monteiro Lobato nos induziam a recriar, nos quintais arborizados, o sítio do Picapau Amarelo. Sim, havia casas e, aos fundos, quintais ensolarados, jabuticabeiras e goiabeiras que nos abrigavam, pontes e trapézios em nossas aventuras de um Tarzan indígena. Meninos armados de arco e flecha e, à parte, meninas entregues aos cuidados de bonecas, preparando saborosos e imaginários quitutes...
A infância se derramava, generosa, por aqueles dias imensamente longos. Para tudo havia tempo – escola, deveres de casa, esporte, brincadeiras – e ainda sobrava. E a disciplina paterna impunha-nos limites e proteção: banho tomado antes do café da manhã e do jantar, toda a família reunida à mesa no horário das refeições, dinheiro curto para as matinês de domingo, o desejo livre de ansiedades e imune ao consumismo.
A palavra colesterol inexistia, de modo que de tudo se comia, sobretudo graças à oferta prestimosa dos feirantes aos nos ver em companhia da mãe: uma fatia de abacaxi ou mamão; o caqui maduro; o doce de leite no copinho de sorvete; a lasca leitosa de queijo de Minas...
Nem traziam os dicionários o vocábulo grife. Sequer prestávamos atenção à marca do tênis e da roupa usados, coisas que, como o material escolar, herdava-se de irmão em irmão, já que eram feitos para durar, como as bicicletas imorredouras.
Nossas molecagens desaforavam adultos, sem ofensas ou danos: atirar espoletas em caixas de correio, passar trote pelo telefone, colar chicletes na cadeira do professor, prender com esparadrapo a campainha da vizinha...
Havia um confortável sentimento de pertença ao clã, fiel a seu código de conduta: o mutirão culinário de mãe e tias confeitando cada docinho da festa de aniversário; a árvore de Natal grávida de primícias e promessas; os domingos fartos à mesa dos avós; a magia encantadora do circo; os piqueniques à beira da Lagoa da Pampulha.
Mudou o mundo, mudou o Natal, e também a infância. Quebra-se o encanto, rareiam os avós pacientes, a TV suga a imaginação infantil, a fantasia colore-se de logomarcas. A rua está interditada; o quintal desloca-se para o shopping; o desejo é contabilizado; a alegria maquiada; os brinquedos descartáveis.
Encolhe-se agora a respeitosa distância entre crianças e adultos, abrindo espaço à irreverência, ao desrespeito, à falta de educação. Não há que generalizar, é verdade. Mas espanta-me ver filhos ditarem ordens aos pais e crianças, no ônibus, indiferentes aos mais velhos que viajam em pé.
Perdeu a infância sua inocência? Ou a inocência já não tem infância? Quantos pais oram com seus filhos? Quantos despem-se do pudor de acarinhá-los? Outrora um simples sorvete aquecia o reduto indelével da memória.
Nosso heróis traziam o marca messiânica do altruísmo, embora algemados pelo maniqueísmo da divisão do mundo entre as forças do bem e do mal. Obedecer era uma condição, não uma imposição. Manter disciplina em sala de aula, uma regra, não uma exceção.
Fazia-se da religiosidade a porta aberta ao encontro do imanente com o transcendente, do natural com o sobrenatural, do humano com o divino. Como consolava-nos ter anjos de guarda! Há ainda uma criança que me povoa. Continua alegre, amorosa, mergulhada em fantasias. Sexagenária, sonha com o futuro promissor e acredita que só velhos morrem. Mas, hoje, ela sabe que a velhice não é apenas um predicado da idade.
Há muitas crianças prematuramente envelhecidas pelo trabalho precoce, pela exploração sexual, pela indiferença dos adultos cujos corações de carne petrificaram-se, incapazes de encantamento, curiosidade e vertigem d’alma frente à imensidão do porvir.
Engessados pela letargia da amargura, resistem a tirar os sapatos da sisudez, meter os pés na lama das alvíssaras, deixar que a enxurrada do imprevisto ensope roupas e pele, ressuscitando o sublime momento da infância.
Frei Betto é escritor, autor de “Alfabetto – autobiografia escolar” (Ática), entre outros livros.
12.10.07
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