Em poucos instantes, os visitantes formam uma coluna na entrada da aldeia. Dois deles desenrolam uma faixa na qual se lê "Feliz é a nação cujo Deus é o Senhor" e, embaixo, a versão na língua indígena: "Hurywete Teko Wá Ta'e Tupàn Wazar Romo Hekon A'e Xe". E começam a marchar em bloco pelo chão de terra que corta a aldeia Zutíwa, um povoado isolado e enfiado na floresta, na região Centro-Sul do Estado. Os guajajaras (ou tenetearas) são o povo indígena mais numeroso do Maranhão, com cerca de 13 mil pessoas. Zutíwa, na Terra Indígena Araribóia, é uma das maiores aldeias do Estado.
Enquanto caminham, índios e alguns brancos entoam hinos evangélicos na língua guajajara. Nas casinhas de pau-a-pique cobertas de palha à margem do caminho, crianças saem à porta para ver a novidade. Mulheres amamentando em pé voltam-se, curiosas. Numa casa adiante, um grupo de índios, sentados à sombra de uma enorme mangueira carregada de frutos ainda verdes, acompanha o movimento sem sorrisos ou acenos.
A marcha chega ao centro da aldeia e pára diante da escola, uma construção térrea sem reboco. A chegada da "Tupàn Ze'en", ou "Palavra de Deus", é especial para os guajajaras de Zutíwa, que se dizem "uzeruzar ma'e" ou "crentes". A tradução, do "Gênesis" ao "Apocalipse", foi feita por Carl Harrison, americano que viveu anos na aldeia. Ali ele é conhecido por quase todos apenas como "dotô Carlos".
A marcha chega ao centro da aldeia e pára diante da escola, uma construção térrea sem reboco. A chegada da "Tupàn Ze'en", ou "Palavra de Deus", é especial para os guajajaras de Zutíwa, que se dizem "uzeruzar ma'e" ou "crentes". A tradução, do "Gênesis" ao "Apocalipse", foi feita por Carl Harrison, americano que viveu anos na aldeia. Ali ele é conhecido por quase todos apenas como "dotô Carlos".
"Agora vamos aprender a rezar e a ler. Ela vai aprender e me fala", diz, com um sorriso, num português arrevesado, o velho José Guajajara, de calça, camisa e cocar, ao lado da mulher, Rosinha Paulino Guajajara, ambos da aldeia Anajá, que foram a Zutíwa para o lançamento. "Aqui tem muito crente. Já falo para eles sobre a palavra de Deus terça, quarta, quinta, sexta, sábado e domingo. Com a Bíblia inteira vai ser melhor", conta Roberto Gomes Rodrigues Guajajara, de 32 anos, casado com Dinalva, que se apresenta como dirigente da Igreja Batista de Zutíwa.
Os custos do processo de tradução (sua manutenção junto aos índios, viagens, tratamentos de saúde, auxílio de outros tradutores) foram bancados por igrejas e instituições protestantes no Brasil (batista, presbiteriana, cristã evangélica e assembléia de Deus), Reino Unido e EUA. Segundo estimativa da Agência Presbiteriana de Missões Transculturais, o custo foi de US$ 1 milhão. Já a publicação foi bancada pela CrossWorld, uma agência missionária dos EUA - que atua da Bósnia ao Haiti, da República Democrática do Congo à Indonésia -, e pela Wycliffe Bible Translators, agência americana que financia traduções para povos não-cristãos ao redor do mundo.
Os custos do processo de tradução (sua manutenção junto aos índios, viagens, tratamentos de saúde, auxílio de outros tradutores) foram bancados por igrejas e instituições protestantes no Brasil (batista, presbiteriana, cristã evangélica e assembléia de Deus), Reino Unido e EUA. Segundo estimativa da Agência Presbiteriana de Missões Transculturais, o custo foi de US$ 1 milhão. Já a publicação foi bancada pela CrossWorld, uma agência missionária dos EUA - que atua da Bósnia ao Haiti, da República Democrática do Congo à Indonésia -, e pela Wycliffe Bible Translators, agência americana que financia traduções para povos não-cristãos ao redor do mundo.
A "Tupàn Ze'en" é a terceira Bíblia traduzida do começo ao fim para uma língua indígena do Brasil, de acordo com a Sociedade Bíblica do Brasil (SBB). A primeira, em língua uaiuai, foi lançada em 2002 pela Missão Evangélica da Amazônia. A segunda, em guarani embiá, pela SBB em 2004. Há trechos da Bíblia, o Novo Testamento e porções do Antigo já traduzidos para outras 42 línguas indígenas por instituições protestantes. Neste momento, pelo menos outras duas traduções, com a participação da SBB, estão em andamento. O esforço de tradução é reflexo do avanço protestante sobre povos indígenas.
Os exemplares da Bíblia guajajara trazidos nos caminhões e nas caminhonetes chegaram em caixas de papelão com a inscrição "Guajajara Bible Made in Korea" e o acrônimo "SIL". Os 3 mil exemplares foram impressos na Coréia do Sul - aparentemente, segundo missionários, porque o preço (US$ 20 para a impressão de cada exemplar) valia o custo da distância - e os direitos autorais são da Wycliffe, na Flórida. Da instituição faz parte o Summer Institute of Linguistic (SIL), entidade lingüística muito criticada por antropólogos e lingüistas no Brasil, que a acusam de ter o objetivo de converter povos originários. Em 1976, o então presidente Ernesto Geisel chegou a proibir o SIL de entrar nas aldeias por alegações de que o instituto estaria de olho nas riquezas naturais da floresta.
Hoje, os índios não querem saber de velhas polêmicas. O foco está na Bíblia. Os exemplares são vendidos a R$ 10 (para que entendam que o livro tem valor). Missionários presbiterianos envolvidos na tradução festejam: o mundo tem cerca de 6 mil línguas e 236 contam com a tradução integral da Bíblia.
Na frente da escola da aldeia, os índios e os missionários celebram um culto na língua indígena. A alemã Brigitte Engelberg, de 53 anos, uma das missionárias na linha de frente na evangelização dos guajajaras, assume o microfone. "Nós, alemães, já temos a Bíblia inteira há 500 anos e hoje são vocês", diz ela para os índios que a ouvem em pé, formando um "u" diante da escola. "Essa palavra não é como um livro de receita de bolo", continua, com a Bíblia na mão. Brigitte então lê um trecho em guajajara do Evangelho de João e aconselha os índios a falarem com Deus "e ele vai se revelar mais e mais para vocês".
O cristianismo não é novidade para os guajajaras. No século XVII, foram erguidas as primeiras instalações jesuíticas entre eles, oferecendo "certa proteção contra a escravidão, mas implicaram um sistema de dependência e servidão", escreve o antropólogo Peter Schröder, da Universidade Federal do Pernambuco, em um perfil dos guajajaras postado no site do Instituto Socioambiental. No fim do século XIX, foi a vez de capuchinhos instalarem uma missão na região. O local - então chamado de Alto Alegre - foi palco, em 1901, de um levante guajajara em que mais de 200 católicos, entre eles alguns frades italianos e freiras, foram mortos pelos índios. Poucos meses depois, índios canelas, moradores, polícia e até o Exército derrotaram os índios, que foram perseguidos por anos, relata Schröder.
Nos anos 1930, vieram os primeiros missionários protestantes ligados à atual Crossworld. Mas foi a partir da chegada de Harrison à região, em 1969, que o contato dos índios com o universo cristão da Reforma parece ter ganho impulso. O Novo Testamento, traduzido por ele com a ajuda de alguns indígenas, circula entre os guajajaras desde que ficou pronto, em 1985. Existem mais de cem aldeias guajajaras no Maranhão. Os missionários estão lá desde o século XVIII.
Nas aldeias de Barreirinha, Angico Torto, Jacaré e Zutíwa é fácil identificar sinais de assimilação de discursos e comportamentos inspirados pelo cristianismo evangélico. Em Angico, uma das muitas aldeias localizadas na beira da rodovia que liga os pequenos municípios de Arame e Grajaú, Ernesto Praxedes Guajajara, um rapaz de baixa estatura e sorridente, de 28 anos, que tem de cor trechos do Novo Testamento, dirige cultos de sexta a domingo na sua casa de barro e bambu.
Ernesto é o evangelizador da aldeia. Até antes da Bíblia, usava a versão do Novo Testamento nos cultos. "São mais os jovens que vêm. Eles têm mais facilidade de entender", afirma. "Costumo falar da vida de Jesus, sobre abandonar os pecados, fazer a vontade de Deus, estudar mais a palavra, senão a gente não se prepara para evitar o mal. 'Vigiai e orai'." E o que são os pecados? "Festa de dança com banda da cidade, álcool, prostituição, briga, quando um casal passa do limite, cobiça a mulher do outro." (continua)
Os exemplares da Bíblia guajajara trazidos nos caminhões e nas caminhonetes chegaram em caixas de papelão com a inscrição "Guajajara Bible Made in Korea" e o acrônimo "SIL". Os 3 mil exemplares foram impressos na Coréia do Sul - aparentemente, segundo missionários, porque o preço (US$ 20 para a impressão de cada exemplar) valia o custo da distância - e os direitos autorais são da Wycliffe, na Flórida. Da instituição faz parte o Summer Institute of Linguistic (SIL), entidade lingüística muito criticada por antropólogos e lingüistas no Brasil, que a acusam de ter o objetivo de converter povos originários. Em 1976, o então presidente Ernesto Geisel chegou a proibir o SIL de entrar nas aldeias por alegações de que o instituto estaria de olho nas riquezas naturais da floresta.
Hoje, os índios não querem saber de velhas polêmicas. O foco está na Bíblia. Os exemplares são vendidos a R$ 10 (para que entendam que o livro tem valor). Missionários presbiterianos envolvidos na tradução festejam: o mundo tem cerca de 6 mil línguas e 236 contam com a tradução integral da Bíblia.
Na frente da escola da aldeia, os índios e os missionários celebram um culto na língua indígena. A alemã Brigitte Engelberg, de 53 anos, uma das missionárias na linha de frente na evangelização dos guajajaras, assume o microfone. "Nós, alemães, já temos a Bíblia inteira há 500 anos e hoje são vocês", diz ela para os índios que a ouvem em pé, formando um "u" diante da escola. "Essa palavra não é como um livro de receita de bolo", continua, com a Bíblia na mão. Brigitte então lê um trecho em guajajara do Evangelho de João e aconselha os índios a falarem com Deus "e ele vai se revelar mais e mais para vocês".
O cristianismo não é novidade para os guajajaras. No século XVII, foram erguidas as primeiras instalações jesuíticas entre eles, oferecendo "certa proteção contra a escravidão, mas implicaram um sistema de dependência e servidão", escreve o antropólogo Peter Schröder, da Universidade Federal do Pernambuco, em um perfil dos guajajaras postado no site do Instituto Socioambiental. No fim do século XIX, foi a vez de capuchinhos instalarem uma missão na região. O local - então chamado de Alto Alegre - foi palco, em 1901, de um levante guajajara em que mais de 200 católicos, entre eles alguns frades italianos e freiras, foram mortos pelos índios. Poucos meses depois, índios canelas, moradores, polícia e até o Exército derrotaram os índios, que foram perseguidos por anos, relata Schröder.
Nos anos 1930, vieram os primeiros missionários protestantes ligados à atual Crossworld. Mas foi a partir da chegada de Harrison à região, em 1969, que o contato dos índios com o universo cristão da Reforma parece ter ganho impulso. O Novo Testamento, traduzido por ele com a ajuda de alguns indígenas, circula entre os guajajaras desde que ficou pronto, em 1985. Existem mais de cem aldeias guajajaras no Maranhão. Os missionários estão lá desde o século XVIII.
Nas aldeias de Barreirinha, Angico Torto, Jacaré e Zutíwa é fácil identificar sinais de assimilação de discursos e comportamentos inspirados pelo cristianismo evangélico. Em Angico, uma das muitas aldeias localizadas na beira da rodovia que liga os pequenos municípios de Arame e Grajaú, Ernesto Praxedes Guajajara, um rapaz de baixa estatura e sorridente, de 28 anos, que tem de cor trechos do Novo Testamento, dirige cultos de sexta a domingo na sua casa de barro e bambu.
Ernesto é o evangelizador da aldeia. Até antes da Bíblia, usava a versão do Novo Testamento nos cultos. "São mais os jovens que vêm. Eles têm mais facilidade de entender", afirma. "Costumo falar da vida de Jesus, sobre abandonar os pecados, fazer a vontade de Deus, estudar mais a palavra, senão a gente não se prepara para evitar o mal. 'Vigiai e orai'." E o que são os pecados? "Festa de dança com banda da cidade, álcool, prostituição, briga, quando um casal passa do limite, cobiça a mulher do outro." (continua)
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