21.10.07

As novas tribos do Senhor (3)

Desde a Constituição de 1988, a Funai não concede autorização para missionários entrarem em terras indígenas, para que os "usos e costumes dos povos sejam respeitados". O órgão informa que chegou a retirar missionários de algumas aldeias. Mas operações como essas são delicadas, por duas razões: primeiro, falta de pessoal e o acesso é fácil a muitas aldeias; segundo, o Brasil assinou em 2002 a Convenção 169, da Organização das Nações Unidas (ONU). Os países signatários reconhecem, entre outros pontos, que os povos indígenas têm autonomia para decidir, por exemplo, quem deve ou não entrar em suas terras. Assim, como evitar a entrada ou retirar missionários das aldeias se eles têm a permissão das lideranças para ficar? E mais: o que fazer com pastores que sejam indígenas?

O que costuma inquietar antropólogos, lingüistas indígenas e sertanistas são indagações como: Por que alterar a cultura dos indígenas com visões de mundo alheias às deles? Quais serão os reflexos dessas mudanças na estrutura social desses povos? Quem garante que a teologia cristã dá aos índios um instrumental mais apropriado para sua vida em comunidade do que sua perspectiva animista?

O pastor presbiteriano Norval Oliveira da Silva, de 44 anos, que nos últimos quatro fez a verificação e revisão da Bíblia guajajara, diz considerar impossível preservar uma cultura. "Nós, missionários, estamos insistindo no fato de que as culturas são dinâmicas. E a mudança cultural ocorre com a presença do missionário ou não." Muitos povos, argumenta, têm a organização social revirada por causa do contato com madeireiros, garimpeiros, álcool ou só pelo fato de terem sido contatados. Para ele, as mudanças no estilo de vida do índio crente não alteram sua real identidade e sua cultura. "Ele pode ser teneteara sem seguir pajelança, sem que sirva aos espíritos. Eu sou brasileiro e não pulo carnaval."

O reverendo Sérgio Paulo Martins Nascimento, presidente da Agência Presbiteriana de Missões Transculturais, que, ao lado de missionários de outras partes do país e do exterior, participou das festas de lançamento da Bíblia no interior do Maranhão, parte do pressuposto de que o indígena não é perfeito só porque vive na mata, mais afastado da civilização (alguns nem tanto). "Ele é humano como todos nós e todos somos falíveis." A Bíblia, portanto, seria o caminho para todos. "O que falamos é 'você tem essa opção, o Cristo do Evangelho, a escolha é sua'. E as mudanças, a partir do exame crítico, partem deles e não da imposição, como foi o processo de cristianização jesuítica." Os guajajaras não têm, tradicionalmente, um deus único, mas criadores ou heróis culturais, responsáveis pela criação e transformação do mundo, diz Schröder. Maíra e os gêmeos Maíra-ira e Mucura-ira são os mais importantes, explica.

Por trás dos muros da Igreja de São Francisco, matriz da cidade de Arame, a movimentação evangélica é vista com discrição. Para um padre que preferiu não ter o nome revelado, o lançamento da Bíblia em guajajara é "ótimo, uma alegria" e ele não vê problema no fato de ela ter sido feita por protestantes. A Igreja Católica reconhece que, desde o que ficou conhecido pelos católicos como "massacre de Alto Alegre", sua atividade missionária refluiu. "Até uns 15 anos atrás, não se podia nem falar com os padres da região sobre trabalhar com os guajajaras. Houve um afastamento deliberado. E os missionários protestantes estrangeiros chegaram livres dessas histórias."

Mas não é isso que fez a diferença. Em boa parte das 488 terras indígenas brasileiras, há atualmente presença de missões protestantes. E as mudanças comportamentais são tão ou mais perceptíveis que a dos guajajaras. Em "Transformando os Deuses", ensaístas relatam que entre índios convertidos de diversas regiões do Brasil já se vê manifestações de transe/êxtase em cultos pentecostais; glossolalia (fala em línguas incompreensíveis); batismos; esforços de dominação e demonização do xamanismo; e cisão de povos entre "católicos" e "crentes".

Segundo o levantamento do IBGE "Tendências Demográficas de 2005", o número de indígenas autodeclarados católicos caiu de 64,3% para 58,9%, de 1991 para 2000. Dos 41,1% restantes, 20% se disseram evangélicos. Entre eles, os que mais cresceram foram os pentecostais, de 7,7% para 11,9%.

É difícil estimar quantos são os guajajaras que já aderiram à fé evangélica. Em algumas aldeias guajajaras - como Anajá, Barreirinha e Betel -, a parcela de índios "crentes" é de quase 100%, afirma Bronwen. "Essas aldeias já são diferentes: não fazem mais 'muquiada' e já não há espaço para o pajé."

Talvez justamente por sentir que seu papel estivesse sendo ameaçado pela nova realidade, Alcebíades Miranda Guajajara, de 65 anos, pajé da aldeia Jacaré, tomou uma decisão inusitada: converteu-se. "Fui na crença tem uns cinco anos. Antes fumava, bebia cachaça, dava na mulher demais. Eu aceitei a palavra de Deus. Tudo isso eu deixei." Alcebíades diz também que não faz caruara. Pergunto se, como crente, continua sendo pajé. Ele me olha com espanto. "Como é que vou curar os outros?" A resposta revela que, pelo menos entre alguns índios mais velhos que se dizem convertidos, a fé cristã-evangélica não penetrou totalmente no universo e na mitologia guajajara. Na aldeia Zutíwa, por exemplo, o cacique Bernardo, 58 anos, recém-convertido, diz que continuam a fazer a "muquiada" e festas tradicionais, a do milho e a do mel, embora já não procurem tanto os pajés. "Posso ser cem anos crente, mas a cabeça é a mesma de sempre."

Até quando essa dualidade permanecerá, ninguém sabe. Os missionários apostam que a chegada da Bíblia aumentará o número de conversões - principalmente entre os jovens, que revelam mais interesse pela obra. Só na sexta-feira em que a Bíblia foi lançada na aldeia de Bernardo, cerca de 20 exemplares foram vendidos em pouco mais de duas horas. Até a tarde de sábado, mais de cem.

fonte: Valor Econômico
colaboração: Marília Cesar

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