21.10.07

As novas tribos do Senhor (2)

Não é só. Ernesto - ou Xini, como é conhecido - entendeu que tem a obrigação de mudar práticas ancestrais de seu povo consideradas pelos missionários, e agora por ele, obras do demônio. A "muquiada" é um de seus alvos. Trata-se do rito de passagem da menina para a fase adulta, quando da primeira menstruação. "Aconselho as pessoas a não participarem. Os mais velhos contam que veio de outra dimensão. O pajé fica a noite toda cantando. É idolatria aos espíritos. Não é de Deus."

Pela tradição, a menina é mantida isolada numa cabana, coberta com tinta preta de jenipapo e alimentado-se por até uma semana de um tipo de farofa. Depois, diante da aldeia, o pajé dança, invoca espíritos e pede proteção a ela. Os homens oferecem caças que reuniram nas vésperas. Em algumas aldeias, dizem os religiosos e os índios, a festa degenerou e depois do rito os índios mergulham num embalo coletivo de cachaça.

Outro alvo de Xini é a feitiçaria de pajés temida pelos guajajaras: o caruara. O evangelizador tenta explicar: diz que o pajé tem uma ciência de pegar um pedaço de osso, ou um pedaço de pau e o espírito associado a esses objetos, fazê-lo virar água e colocá-lo em alguém. A pessoa, diz ele, adoece. Somente outro pajé tem poder para desfazer o feitiço. "Também não é coisa de Deus ficar adorando espíritos. O caruara pode até matar. Já falei com pajés, para não cair a caruara. Quem é crente está protegido. Mas depende da fé."

Nascida na cidade de Chelmsford, a 50 quilômetros de Londres, Bronwen Hewett, missionária de 57 anos da CrossWorld, tem o apoio de Brigitte na linha de frente da evangelização dos guajajaras. Ela vive em Arame desde 1998. E, ao falar do caruara, é categórica. Enquanto para os guajajaras os pajés operam espíritos bons e maus, para ela só há um lado. "O pajé é instrumento de Satanás, perguntando aos espíritos, demônios."

Pelo menos parte dos missionários é condescendente com práticas guajajaras: a poligamia, por exemplo. Mas o caruara, dizem, é simplesmente incompatível com o pensamento teológico. O rito da "muquiada" é outro choque para os missionários. "Na Bíblia está escrito para não se chamar espíritos, para não se fazer coisas que agradam a Satanás", afirma a britânica, de olhos azuis meigos e ar descontraído, que circula por Arame e pelas aldeias numa moto Honda Bis.

Essa rejeição à "muquiada" já começa a ser partilhada por índios crentes. "Ainda estamos batendo cabeça sobre como fazer quando tiver uma menina na idade da 'muquiada'", revela Inácio Guajajara, 28 anos, da aldeia Novo Zutíwa, que conta ter se convertido há três meses. Freqüentador da Assembléia de Deus no município de Grajaú, Inácio - que naquela sexta-feira estava de camisa abotoada até o pescoço (sob quase 40º C), calça, sapato e Bíblia na mão - diz que deixou de beber, dançar, fumar e a ir a "muquiadas".

Francisco Guajajara, 16 anos, neto do cacique Crispim da aldeia Barreirinha e cujo avô materno ele conta ter morrido por caruara, esclarece: "A gente deixa de ir para a festa da 'muquiada'. Porque senão a pessoa vai ter vontade de cair e a gente se desvia outra vez." Na própria aldeia Zutíwa, Paulo Gomes Guajajara, 32 anos, encontrou alternativa: oração, em vez do rito de passagem tradicional. "A gente fez a nossa festa, um culto, para não se misturar. Lê a Bíblia [no caso, ainda o Novo Testamento], canta na igreja da aldeia, ora e entrega a menina-moça para Deus."

Essas são algumas das mudanças mais perceptíveis nos traços culturais dos guajajaras que dizem ter se tornado crentes. Francisco relata outra experiência pessoal. "Meu pastor proibiu muitas coisas: jogar bola, namorar menina que não é crente, participar de festa." O adolescente, que fala um português claro, estuda informática na cidade e freqüenta os cultos da Assembléia de Deus.

"Mais do que proselitismo de indivíduos, o cálculo missionário busca gerar um campo simbólico no qual idéias como as de culpa, amor, eternidade, criação, entre outras, tenham sentido para o grupo-alvo", escreve Ronaldo de Almeida, doutor em antropologia social, num ensaio intitulado "Traduções do Fundamentalismo Evangélico".

No caso dos guajajaras, a relação com os missionários era marcada até poucos anos atrás pela prestação de ajuda no campo da saúde, com envio de médicos e treinamento de agentes de saúde nas aldeias. Alguns evangélicos, no entanto, usaram de outros caminhos para garantir sua entrada nas aldeias. "No Zutíwa, todo o pessoal disse que aceitava Jesus. Uns diziam que iam se batizar até na lama", lembra o jovem Francisco. Por que tanto fervor? "Só para receber roupas que um pastor batista dava para os convertidos." Segundo Bronwen, esse pastor não está mais na região e o grupo de missionários avalia com cautela pedidos de ajuda material, exatamente para não haver uma adesão à fé por interesse em bens e favores. As aldeias a recebem hoje, diz, para falarem da mensagem bíblica. E só. (continua)

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