O filósofo Roberto Romano, da Unicamp, comenta trechos de um manual que serve como base para o ensino religioso em instituições públicas da cidade de Sorocaba. Tal metodologia inspirou o polêmico projeto de lei Deus na Escola, aprovado na Assembléia Legislativa e à espera de sanção, ou veto, do governador José Serra
O que diz a cartilha: “Falar de família é falar da célular máter da sociedade. Quando pensamos em família, pensamos na mais antiga e estável das sociedades. Foi Deus quem instituiu a família, devendo ela portanto, fundamentar-se nos princípios estabelecidos pelo Senhor em Sua Santa Palavra, e, também nos princípios legais, desde que esses não firam as ordenações bíblicas.”
Roberto Romano: “Esta noção de família é aristotélica e teológica. Que os fiéis católicos acreditem nesta doutrina, nenhuma objeção. Mas que ela seja imposta aos estudantes cujos pais não partilham de semelhante visão é um abuso, um atentado aos direitos constitucionais. O que a cartilha exige é que as leis civis sejam submetidas às Escrituras. Ela ignora, porém, que hoje o Estado define sua soberania e suas leis sem a licença da Igreja”.
O que diz a cartilha: “Entendemos também que a família precisa resgatar os princípios morais, como fidelidade conjugal. A família deve ser preservada de todo tipo de imoralidade, isto porque, a imoralidade: corrompe os bons costumes, destrói a união familiar, conduz a família ao caos”.
Roberto Romano: “A família e a fidelidade conjugal são elementos da ordem civil e da ética. E ‘princípios morais’ no mundo moderno são legitimamente conflitantes. Existe um politeísmo moral que deve ser respeitado na democracia. Se existir apenas o monopólio da moralidade por uma ou outra instituição, o nome do regime passa a ser tirania ou ditadura. Não por acaso as ditaduras do espanhol Francisco Franco e do chileno Augusto Pinochet foram moralistas e também exercidas em nome da ‘moral cristã e católica’. Os resultados são eloqüentes.”
O que diz a cartilha: “Deus nos ama através da sua criação. Deus criou todas as coisas, incluindo cada um de nós, porque Ele nos Amor. Deus criou as aves, as árvores, as flores, os animais, e tudo o que se pode ver, como aquilo que não se pode ver, como um ato de amor. Foi o amor de Deus que O levou a criar todas as coisas.”
Roberto Romano: “Essas doutrinas são católicas e cristãs. Religião é algo mais amplo”.
O que diz a cartilha: "O conhecimento religioso, enquanto sistematização de uma das relações do ser humano com o transcendental (divino), está ao lado de outros, que, articulados, explicam o significado da existência humana.”
Roberto Romano: “Na tentativa de reduzir a religião a uma (péssima) antropologia, a cartilha comete um erro conceitual em relação ao termo ‘transcendental’. Na filosofia moderna, ele se refere ao poder do homem de captar fenômenos no tempo e no espaço. Portanto, o termo correto nesse caso seria ‘transcendente’, visto que Deus não é submetido ao tempo ou ao espaço, mas vai além disso."
*Roberto Romano é professor titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor do livro Brasil, Igreja contra Estado (São Paulo, Ed. Kayrós, 1979), entre outras publicações.
fonte: Veja SP
14.10.07
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