20.10.07

Dom de iludir

“Minha viagem será um espetáculo. É a primeira vez que vou pregar naquela igreja. Trata-se de uma comunidade com mais de 500 membros e fica num bairro de classe média-alta. O faturamento do final de semana está garantido. Ah, como eu gosto disso.”

Muito conhecido e requisitado, o pastor estava no aeroporto vestido para entrar em campo. A tal igreja mencionada já havia recebido o e-mail com uma série de “recomendações”, eufemismo para traduzir as exigências do aspirante a popstar.

Segundo o folclore vigente, é possível classificar o artista de acordo com a lista de exigências que apresenta aos produtores. Uma centena de toalhas brancas, waxflower da Austrália e frésias dos Países Baixos nos arranjos florais (não os de Bach), lichia e açaí na cesta de frutas, além de caixas de bebidas alcoólicas variadas para elevar, digamos, a adrenalina às alturas antes do show.

Já os aditivos para os pastores showmen geralmente passam pelo bolso. Não apenas o poder exerce efeito afrodisíaco... Se considerarmos o buraco negro que caracteriza a vida financeira de alguns expoentes desse meio, recomendaria servir antes dos cultos jarras com maracujá e pitaia batidos, resultando no emblemático suco “maracutaia”.

Não me venha falar na malícia
A rotina de viagens dos popstores (com trocadilho, claro) é um tanto estressante mas tem sua magia. É comum exigirem hotéis com muitas estrelas, aquisição mínima de um combo de produtos variados e passagens aéreas de determinada companhia (facilita a viagem de férias com a patroa e os filhos para a “América”, como costumam dizer os “emergentes”).

Com quilometragem maior, outros mais abusados incluem detalhes que são uma graça. Nada divina, no caso. Por exemplo: o carro que for buscá-los no aeroporto deve ter ar condicionado. A regra vale inclusive para Porto Alegre no inverno.

Antes da mensagem que será repetida pela enésima vez, é o momento do “camelódromo gospel”. Com desenvoltura de apresentador do ShopTour, eles desfilam sua vitrine de CDs de mensagens e livros de edição própria, já que provavelmente as obras não seriam aprovadas pela maioria das editoras. As ofertas de “pague 6 e leve 15” por vezes são entremeadas de menções a obras de cunho social ou qualquer outro verniz que torne mais nobres os fins advindos da comercialização dos meios.

Você está, você é
Na hora da pregação, é comum os preletores de aluguel derramarem elogios ao líder da igreja local (“um homem respeitadíssimo em todo o país”), à galera do louvor (“me senti no céu na hora em que estávamos cantando”), ao templo (“os irmãos estão de parabéns por construírem um lugar tão lindo e aconchegante”), numa sucessão de rapapés para lustrar o ego coletivo e amolecer o coração do mercado-alvo da feirinha que vai rolar depois do culto.

As mensagens têm exegese e hermenêutica de procedência duvidosa. Na falta de conteúdo, costumam abusar de clichês do tipo “você é mais que vitorioso”, “tudo posso naquele que me fortalece” e a todo momento pedem para repetir alguma afirmação pseudoprofética para o irmão do lado. Espectadores mais desconfiados remascam se a Bíblia deles tem apenas um terço das páginas, volume suficiente para reunir os trechos das mesmas pregações rep(r)isadas ad nauseam. “Hoje vou falar sobre uma mulher que encontrou Jesus e teve sua vida mudada...”.

Você faz, você quer, você tem
Modestíssimos, os pregadores itinerantes a-do-ram ilustrar as mensagens com episódios de sua própria vida. A infância sempre foi pobre e cheia de dificuldades, mas os planos de Deus sempre são de dar prosperidade. A menção a Jeremias limita-se àquele solitário versículo do capítulo 29. Toda a trajetória do profeta chorão é esquecida na hora de inspirar as pessoas a “conquistar a vitória”, “envergonhar o inimigo” e outras frases de efeito.

“Hoje tenho uma casa grande, três carros zero na garagem e blábláblá”, contam para adubar a fé da platéia. Se alguém fosse até a casa dos saltimbancos da prosperidade constataria que a realidade simultaneamente tem glamour e uma indisfarçável atmosfera kitsch.

Na sala (ou “living”, como a esposa prefere chamar porque acha mais “chique”), sofás brancos e almofadas com estampas de onça e zebras. Ressentidas da falta de um portrait by Camasmie feito com chocolate, as paredes acomodam várias láureas de associações obscuras e o indefectível diploma de “Doutor em divindade”. Poucos sabem que o tal curso foi feito pela Internet e pago a prestações no cartão de crédito Platinum. “Plata, prata, plaga, praga”, comporiam os irmãos Augusto e Haroldo de Campos num arroubo (epa!) profético-concretista.

Você sabe explicar, você sabe entender
Siderados com a mise-en-scène um tanto caricata, os visitantes neófitos têm dificuldades para discernir se estão numa igreja ou em uma palestra de nerolingüística. Cada vez que os gestos se tornam mais largos e o volume da voz do pregador aumenta, os “aleluias” e “glórias” se multiplicam. Uma menção ao capiroto provoca aprovação ainda mais estrepitosa. Améééém?

Na tentativa de conferir um certo refinamento ao discurso lasso, os preletores de aluguel têm o hábito de entremear sua prosopopéia flácida com citações e menções às últimas leituras. Usualmente, as obras mais densas que leram em toda a vida foram opúsculos de Roberto Shinyashiki ou Augusto Cury. A cartilha Caminho Suave não entra no rol de leituras, por supuesto.

Dependentes da languidez espiritual da platéia, oferecem-lhe apenas placebos que vão durar até a próxima “reunião da vitória”. Muitos no auditório reconhecem isso, mas mentiras sinceras lhes interessam, como cantou o poeta Cazuza.

Cale a boca e não cale na boca notícia ruim
A pronúncia claudicante e a concordância tosca revelam o círculo vicioso e empobrecedor no qual estão embrulhados esses replicadores de meme(nsagens) desprovidas de sustância. Num equívoco contumaz, optaram equivocadamente pela “glória-pires”: pouco profunda e de vida curta. Como aconteceu com os filhos de Ceva, são conhecidos por aqui e muitos permanecem anônimos no inferno.

Do ponto de vista psicológico, esse tipo de comportamento sinaliza traços de desvario para compensar sua dor mais aguda: a falta de respeito em certos grupos aos quais C.S. Lewis chamaria de “círculos fechados”. Incensados pela massa ignara, sofrem em razão da consciência de que são alvo do menosprezo daqueles que, em última (e secreta) instância, gostariam de ser. Isso talvez explique o fato de às vezes elegerem alguns alvos para assestar sua inveja travestida de defesa da sã doutrina.

Fosse isso possível, cederiam os bens e a contínua lisonja para conseguir aquilo que a grana não é capaz de adquirir. Solitários por dentro e por fora, têm apenas o travesseiro por confidente. Limitados pela teia que eles próprios urdiram, a cada dia “tornam-se o que são”, cumprindo a máxima de Nietzsche. Preço demasiadamente alto para uma existência que não se repetirá. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.

texto de Sérgio Pavarini que será publicado na próxima edição da revista Eclésia.

14 comentários:

luciana disse...

É preciso se apaixonarem pelo que faz.
A um tempo atrás pregadores eram visto como pessoas apaixonadas pelo evangélho.
Tinham paixão, sentimento que arde, borbulha e ferve.
Porque criam na veracidade do que pregavam.
Sabiam o sentido de terem encontrado a "pérola" de grande valor, que não estava expostos nos pescoços de suas mulheres e sim dentro de seus corações.

Anônimo disse...

Pavarini:

Maravilha de artigo! Realista ao extremo! Mostra de uma forma nua e crua o mundo nauseabundo e repugnante dos mercadores do evangelho!

Este artigo deveria estar na primeira página de todos os jornais e enviado a cada um desses pregadores, a começar pelo Silas Mala-feita.

Daniel

Alzira Sterque disse...

O seu comentário é super-verdadeiro. Quem lhe chamar de sarcástico é porque é cego e surdo. Infelizmente esta é a realidade do meio evangélico brasileiro, cópia do modelo americano: sucesso mundano. Só que sucesso mundano não garante livre acesso aos portais celestiais.
Não vos conformeis com o mundo, ó crentes!! NÃO TOMEIS A FORMA DO MUNDO --porque aqui no mundo tudo passa! Continue assim, escrevendo assim, discernindo os (difíceis) tempos que atravessamos.

Unknown disse...

Essa vida é engraçada!!! Quando eu tinha 21 anos fui expulsa da igreja por denunciar este tipo de coisa. Fui chamada de discipula do capeta! O pior é que até hoje (9 anos depois) não consigo engolir nenhum pastor...

Anônimo disse...

A Bíblia diz que devemos obedecer os pastores, presbíteros e diáconos da igreja. Está em João em algum lugar, mas está porque li. Só que às vezes questiono o esfriamento da igreja e do porque não orarem mais em vigílias no período em que a igreja mais precisa, já que está em obras e ajudando famílias com doações que nós crentes vemos. Essa é a melhor virtude da igreja que frequento: ajudar as pessoas e evangelizar as pessoas de todas as idades. Como crente, creio que quanto maior a obra, mais incomodamos o diabo. E conversei com uma pastora que discipula meus pastores sobre a falta das reuniões de jovens e vigílias. Ontem estranhei porque a pregação foi sobre o Capítulo 10 de Tiago que fala sobre o "veneno da língua". Mas sei que estou errado, pois pedi oração pra essa pastora, quando na verdade deveria ter ido falar com os meus pastores.
Precisamos confiar mais em nossos pastores, sim! E pedir discernimento e sabedoria a Deus para que ele nos mostre a verdade. Eu creio que Ele nos mostrará. Mas não podemos sair por aí escrevendo o mais ácido comentário, isso é rebeldia, ainda mais quando se generaliza. Nem todo pastor é megastar e falso profeta! Muitos cumprem o chamado de Deus. Não gosto desses pastores que comercializam DVDs com o assunto "a chave para o êxito financeiro". Como se Jesus quisesse mesmo atrair multidões pelas fórmulas mirabolantes que os pastores de quinta tem a pachorra de dizer que são bíblicas. A Bíblia nos ensina êxito em todas as áreas da vida, mas sobretudo é o alimento pra Deus forjar nosso caráter porque sabemos que nossa vida posterior será melhor e sem gente mentirosa!

Anônimo disse...

KKKKKKKKKKKK

Sarcástico sou eu.
O amado é um mestre!

PErfeito seu artigo amado!
Parabéns!!! 490 anos de reforma protestante.
E uns pouco acham que a vida cristã, que a igreja cristã começou agora com esses pseudos pregadores, inventores de bizarrices maltrapilhas!

Grande abraço e novamente parabens!

JB

www.joaobosco.wordpress.com

IR DOMINGOS disse...

DOMINGOS PIAUHYLINO - PARANOÁ/BSB
MAGNIFICO. HOJE A MARCA JESUS É A QUE MAIS VENDE NO MERCADO. "ME DÁ AÍ UMA PORÇÃO DE EVANGELHO, MAS NÃO PRECISA MUITO, SÓ PRA EU TER A FARTURA NA MESA ESTA SEMANA, OU UM KG DE JESUS, NADA QUE ME LEVE AO ARREPENDIMENTO, SÓ UM POUCO DE EMOÇÃO E ALEGRIA MOMENTANEA, SÓ UNS R$ 20,00 DE JESUS PRA EU DORMIR BEM HOJE"

Episcopal disse...

Realmente não consigo entender, Sérgio.

Sou muito novo ainda e meu conhecimento é extremamente escasso. Porém já li, vi e ouvi o suficiente para me revoltar com esses falsos profetas e o atual cristianismo cada mais impuro e complicado.

Agora o que não consigo entender é que para onde vai o conhecimento das pessoas? afinal, garanto que seu comentário foi lido e repassado para diversas pessoas, mas me entristece é ter a certeza de que continuará tendo pouco resultado na prática. Isso que não entendo e me entristece.

Não peço que você pare de escrever e continuar delatando... Mas só que saiba que há um (junto com muitos outros) indignado com a situação cristã de nosso amado país.

Abraços

Willian Bispo

João A Costa disse...

Concordo com o artigo, sem generalizar, mas nao concordo com o tom dado à matéria. Como diz a frase do dia de hoje no cabeçalho, "A intolerância pode ser aproximadamente definida como a indignação dos que não têm opinião" [G. K. Chesterton]. Nota-se a intolerância no artigo.

Outra coisa. A Blíblia não diz nada sobre sermos sal com pimenta, ainda que um pouquinho. O sal puro impede a decomposição, o tempero torna a coisa agradável ao paladar.

Vigia, irmão.

Joao Arlindo

Anônimo disse...

Reflexão;

Eu creio que precisamos mesmo refletir sobre como temos criticado a postura de alguns, talvez mais exagerados ou não, mas, o que preocupa mesmo é que estamos extremamente críticos e defendemos uma fé às vezes no meu enter um pouco farisaica (parece que só o que fazemos está certo).
Somos corpo e como tal temos partes que deveriam interagir, mesmo sendo bastante diferentes umas das outras. Não deveríamos nos escandalizar, mas, orar, clamar, pedir para que Deus venha e endireite veredas tortas.
Onde está o amor cristão?

Unknown disse...

Infelismente tenho que concordar com este artigo. Temos vivido um tempo de mercantilização da fé.
Temos visto a banalização dos principios bíblicos e a relativização do pecado e das verdades de Deus.Pregadores de uma falsa palavra com enfase somente na prosperidade material, no humanismo e no relativismo.
Precisamos voltar a sã doutrina.
Parabens pelo artigo, é duro mas é a verdade.

Pr. Abilio Rodrigues - Vitória - ES

Reinaldo de Almeida disse...

Onde está o capitulo 10 de Tiago na Bíblia?

Filemom disse...

O artigo é uma retórica sofista, antonomásica, carregada de disfemismo. Sem dúvida o autor aproveitou da figura de linguagem, no caso hipérbole, visto que não permitiu que se aproveitasse nada do evangelho que certamente se crê por que é pregado e o é por aqueles que são enviados. O sarcasmo não está dirigido ao "famosos" mas à exposição da Palavra de Deus. Por fim o estrangeirismo usado pelo escritor chega ao barbarismo.É preciso filtrar o que ouvimos dos púlpitos, mas também precisamos promover a lingua portuguesa e é difícil um texto assim tão rebuscado.

SUBLIME MULHER disse...

Meu Nome é Damaris Lisboa, sou pregadora da Palavra de Deus e quando preciso viajar, não me importo com o lugar onde vou dormir, com o que vou comer nem com o número de pessoas que me esperam. Não peço para repetirem o que digo e faço apenas o que o Espírito Santo me diz. Para mim o estrelismo e ou o que vem do diabo é resto e resto só serve p jogar fora. Portanto meu amigo, não somos todos iguais. Só vou porque Cristo comigo vai.

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