1.10.07

Eu consumo, você consome: e o que fazemos com isto?

Todos consomem. Esta verdade incontestável suplanta todas as dúvidas – e não são poucas – que vem do mundo do mercado ou brotam do universo acadêmico. Eu consumo. Livros, idéias, sabonetes, cremes anti-idade, petecas artesanais, balas de menta, filmes “B”, chocolates com amêndoas. Você, leitor, consome culturalmente este artigo. Não por acaso boa parte dos intelectuais contemporâneos já perceberam o papel seminal desempenhado pelas práticas de consumo, real e simbólico. E vários segmentos do mercado também estão para lá de cientes da complexa rede de expectativas agenciadas em torno deste fato social e cultural denominado consumo.

Venho constatando, em estudos de base empírica e qualitativa, o fato de que a partir das práticas e hábitos de consumo se constituem identidades: reativas, criativas, afirmativas ou, não se pode negar, competitivas ou conformistas. O impacto do consumo cotidiano de produtos e serviços define de maneira crucial a nossa existência, interferindo no modo como nos comunicamos e nos afirmamos socialmente. E, o que é fundamental, este processo também interfere na percepção que temos dos outros, seja daqueles que reconhecemos como iguais, seja nos que identificamos como diferentes.

O consumo afirma-se como referente fundamental para a conformação de narrativas sobre si e sobre o outro e compõem universos simbólicos repletos de significado, dos mais aterradores aos mais inspiradores. Sim, nem só de perversões ou da ostentação irresponsável vive o universo do consumo. Apenas para citar um exemplo, vamos nos lembrar aqui do inegável papel desempenhado pelo acesso a cd´s, aparelhos de mp3 e Internet para jovens produtores culturais das periferias urbanas que agora, muito mais facilmente, podem desenvolver e divulgar, mundialmente, os resultados de suas criações.

Contudo, carecemos ainda de estudos comunicacionais sistemáticos voltados à consolidação de uma análise das dinâmicas de consumo e da publicidade sintonizada com a realidade nacional e sensível a sua inserção em dinâmicas mundiais. Ou seja, é preciso investigar tanto os aspectos que são específicos a um modo brasileiro de consumir quanto aqueles outros que se referendam em lógicas de maior abrangência e em processos de partilha transterritorial.

Ainda são poucos os que se dedicam a estudar com seriedade, espírito crítico e caráter construtivo os meandros desta seara, fundamental para escolhermos o rumo que queremos dar à natureza do desenvolvimento de nosso país. Consumo é cultura, minha gente, e nada mais essencialmente político do que isto. Na base das desigualdades e na origem das possibilidades de resolvê-las lá está ele, o consumo. De cultura, de produtos, de atitudes, de visões de mundo.
Nas chamadas sociedades midiáticas, estruturadas em torno das redes de comunicação massivas e segmentadas, determinadas lógicas de consumo dependem visceralmente da cultura da visualidade, do espetáculo e da ideologia do entretenimento. A sociedade do consumo é também uma sociedade do consumo da comunicação.

Chego neste ponto a questões que particularmente pretendo destacar. Em um cenário que prima pela estetização da cultura, o melhor remédio, o fiel da balança possível a ser perseguido tem uma similaridade de escrita mas uma radical diversidade de princípios. Refiro-me aqui a um casamento fundamental para garantir que a sociedade do consumo não se transforme em uma sociedade da consumação. Esta união, por inusitada que soe, agrega a Estética e a Ética.

Na base de um suposto como este encontramos discursos felizmente disseminados: responsabilidade social, consumo responsável, desenvolvimento sustentável são alguns deles. Poderíamos ser levados a pensar que discursos assim restringem-se a instâncias macro-sociais, a dinâmicas produtivas. Insisto, contudo, em uma ressalva. Deveríamos também ser éticos no modo como construímos nossa visibilidade social, bem como nas escolhas que fazemos e que dizem respeito a campos essencialmente culturais: os programas aos quais assistimos, as idéias que propagamos, as convicções que nos orientam, o destino que damos ao lixo que produzimos e às palavras que professamos.

Teóricos da atualidade têm insistido em classificar nossa sociedade como aquela que, em muito comunicando, desaprendeu de comunicar. Outros, mais incisivos, dizem que a comunicação está definitivamente perdida em um universo marcado por uma infinidade avassaladora de conexões, uma miríade de interações tão múltiplas quanto fugazes.

Exatamente aqui retorno ao consumo. E o faço recorrendo a uma distinção. De início, não sejamos ingênuos. Consumir, assim como comunicar, são fenômenos que não sanarão, por si, as bases sociais da exclusão. Uma política de inclusão ao universo do consumo, material e cultural, precisa enfrentar, em alçadas específicas, os impasses e conflitos próprios a este processo. Por último, e não menos relevante: consumir não significa necessariamente ser consumista. A pergunta que reitero, dirigindo-a a você, leitor, e igualmente tomando-a como base de reflexão, é uma só: o que fazemos com o que o consumo faz conosco?

Se patologias associam-se a esta prática, o motivo deveria ser investigado. Deixar-se consumir pelo consumo, distancia-se, em muito, de ser sujeito de suas práticas e hábitos, de consumo, diga-se de passagem. Consumir por necessidade, por desejo e vontade. Ou, na outra ponta do iceberg, consumir por compulsão, por ansiedade. A escolha é, sim, de cada um de nós.

Rose De Melo Rocha – Doutora em Ciências da Comunicação pela Usp, Pós-doutora em Antropologia Pela PUC-SP , é professora do Programa de Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM.

fonte: boletim ESPM News

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