A nenhum ideário se aplica tão bem a analogia com o tempo verbal chamado futuro do pretérito como ao comunismo, que, sempre dependendo do porvir, pagava os desastres presentes com os cheques pré-datados (e frios) da utopia. Daí que não exista situação mais embaraçosa para um comunista do que a longevidade. Este é o caso do historiador comunista (desculpem o oxímoro) Eric Hobsbawm, cuja entrevista a Sylvia Colombo foi publicada recentemente na Folha.
Filiado ao Partido Comunista britânico desde a juventude, o "historiador" já colocara sua pena servil ao serviço deste em 1940, escrevendo com Raymond Williams um infame panfleto pró-imperialista defendendo a invasão da Finlândia pela URSS. Ele justificava sua escolha como a única possível diante da ameaça nazista. Só que, se era tão antinazista, por que continuou a apoiar os soviéticos entre 39-41, quando estes eram os mais importantes aliados da Alemanha? Por que não abandonou o partido para apoiar o país que estava combatendo o Terceiro Reich, isto é, o seu?
Hobsbawm gosta de repetir que foram antes os intelectuais do bloco soviético, não o povo, que se desencantaram com o comunismo. Se o diz, contudo, é porque, como bom intelectual, passou a vida falando de preferência com outros intelectuais. Caso contrário, saberia que, desde seu estabelecimento, não houve no mundo sistema mais desprezado e odiado por suas vítimas, as pessoas comuns. Mesmo o nazismo foi mais popular, pelo menos entre os alemães e enquanto a guerra lhes parecia favorável.
É fácil entender as razões pelas quais nosso ideólogo abandonou os ares de historiador e preferiu dedicar-se à futurologia, prevendo a queda iminente de um tal de império americano. Está certo ele: nada no passado saiu como imaginara (ou desejara) e, assim, aos 90 anos de idade, é mais seguro discorrer sobre o que não irá testemunhar.
Seu problema, contudo, é o seguinte: se não conseguiu antever nem aceitar o desmoronamento, em menos de três gerações, de um império territorial, o soviético, e se tampouco é capaz de compreender que o verdadeiro imperialismo de nossos tempos é o islâmico, por que alguém perderia tempo com ele em seu papel de Cassandra?
Seja como for, um mérito seu deve ser reconhecido. Como velho marxista, ele não manifesta simpatia pelo desvario teocrático-político. Já seus discípulos têm menos escrúpulos e, especialmente no Reino Unido, acreditam que em sua aliança com as lideranças e massas islamizadas está a chave para a revolução antiimperialista.
Se o comunismo foi um dia a aspiração prometéica de transformar o mundo sobre os ossos de cadáveres, hoje em dia ele não passa de um reacionarismo desorientado e rancoroso, cioso de cada detrito de sua mitologia kitsch (como Che Guevara) e sempre acreditando que "quanto pior, melhor". Isso é o que transparece em reações a um artigo que, a respeito do assalto que sofrera nos Jardins, o apresentador de TV Luciano Huck publicou, na semana passada, na seção "Tendências/Debates".
O tom das respostas negativas era o de que um brasileiro que não seja "excluído" não tem direito nem aos benefícios da cidadania, nem à proteção das leis nem sequer à solidariedade. Está proibido até de reclamar. Segundo aquelas, caso alguém pertença à "elite", mesmo que pague impostos e não cometa crimes, tem é que morrer, salvo, talvez, se ingressar no PT. Também quem mandou Huck violar o tabu e afirmar o óbvio, que lugar de bandido é na cadeia? Não cai bem dizer que é graças ao aumento da população carcerária que, nos últimos anos, a criminalidade caiu dois terços em São Paulo.
Há, todavia, um paradoxo que torna ainda mais estranho o contexto dessa história. O que distingue os esquerdistas das pessoas normais e racionais é o fato de que aqueles são avessos à iniciativa privada, achando que tudo deve ser confiado ao grande benfeitor, o Estado. Tudo, sim, com uma exceção: a violência. Quando se trata desta, o Estado (se é de direito e democrático) nunca pode usá-la legitimamente, mas, se forem indivíduos que recorrem a ela, então é permitida e até desejável, sobretudo no caso de bandidos e terroristas.
A violência boa, para essa gente, que provavelmente aprova Hobsbawm e desaprova Huck, é a do free-lancer, exceto quando o Estado é revolucionário e perpetra uma violência idem. Execução em massa de opositores políticos, tudo bem; prisão para bandidos, não.
Nelson Ascher, na Folha de S.Paulo.
9.10.07
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