O teólogo Hans Küng passou por aqui. Sua reconhecida competência como intelectual, apimentada pela polêmica relação que vem tendo há alguns anos com o Vaticano - devido a suas posições críticas em questões como a infalibilidade do Papa, o celibato obrigatório, a ordenação de mulheres, a sexualidade e a reprodução humana e o diálogo inter-religioso - encheu as salas por onde passou e os auditórios onde falou.
Impedido de ensinar teologia católica pelo Santo Ofício, Hans Küng tem conquistado grande notoriedade na Europa e em outras partes do mundo. Viajando muito e em plena produtividade, publicou vários livros, os últimos dos quais versam sobre a questão das outras religiões e a proposta de uma Ética global. Sem sombra de dúvida, trata-se de homem de rara inteligência, grande cultura teológica e notório saber.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o repórter perguntou-lhe sua posição diante do fato de tantas mulheres católicas fazerem aborto. Hans Küng disse acreditar ser dever da Igreja tomar uma posição intermediária e deixar a decisão à própria mulher. E concluiu: A Igreja deve tornar a vida das pessoas mais fácil, e não mais difícil.
Dias depois o escritor Carlos Heitor Cony, em artigo no mesmo jornal, discordou de Hans Küng. Disse não ser este o objetivo das religiões: tornar a vida dos fiéis mais fácil. Viver bem e facilmente não seria o núcleo da prática de uma religião que, uma vez escolhida, traz para o fiel uma série de preceitos e normas que não necessariamente lhe facilitarão o cotidiano. Cony apontava ainda para o fato de muçulmanos e judeus terem restrições bem mais severas que os católicos.
O tema é relevante e instiga fortemente à reflexão. Por um lado, posso entender a intenção de Hans Küng, que certamente não disse que a prática religiosa tem características de anestésico ou entorpecente que proporciona bem-estar. A língua estrangeira, os limites do que significa uma entrevista podem bem ter concedido a seu discurso um matiz que não lhe cabia na intenção.
Não posso deixar, no entanto, de concordar de coração com o comentário de Cony. Em uma sociedade descartável, sem referências e com os valores erodidos, aonde iremos parar se as religiões optam pelo caminho da facilidade? Em uma cultura de sensações fugazes e líquidas, como a vida humana poderá encontrar o sentido maior que a levará à plenitude se todas as opções forem lícitas, avaliadas apenas segundo o bem-estar diante das atitudes tomadas?
Como bem dizia, nos albores do Cristianismo, o apaixonado Paulo de Tarso, tudo é permitido, mas nem tudo convém. Tudo é nosso, mas nós somos de Cristo e Cristo é de Deus. Para aquele ou aquela que encontrou a Deus como absoluto de sua vida, ao mesmo tempo em que lhe é prometido e efetivamente dado o gozo maior da presença amorosa do Senhor, também é proposto um êxodo constante de si mesmo em direção à diferença do outro, em sua fragilidade e indigência que clamam por justiça.
E o rosto desse outro não é apenas o do outro gênero, da outra tradição religiosa, da outra cultura. É também e não menos o rosto desconhecido do que não nasceu porque escolheram para ele outro destino; é o que foi abandonado porque pelo caminho passou alguém mais jovem e mais sedutor; o que deseja um compromisso com perenidade e consistência e recebe em resposta a utilização irresponsável de sua corporeidade refém da tirania do ter, do poder e do prazer.
Por isso o Evangelho com muita razão adverte que se por um lado o seguimento de Jesus implica encontrar alguém em quem depositar seus fardos e jugos a fim de caminhar com leveza e celeridade pela vida, não menos é porta estreita e vereda exígua. Por ele há que passar sem apegos ou cargas que dificultem os passos e verguem os ombros. A vida de fé é graça e beleza, sim, mas está longe de ser uma vida fácil.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
7.11.07
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