3.11.07

Fiéis ao sonho

A luta pela vocação na trajetória de quatro destacados escritores brasileiros contemporâneos.
Inspire-se com eles e corra atrás daquilo que deixa você realmente feliz

Escritor não nasce pronto. A profissão “escritor” não consta em teste vocacional nas universidades. No máximo, verifica-se uma inclinação às Letras do vestibulando. E parece relativamente fácil ser escritor: boas idéias, caneta e papel (ou um bom processador de textos no computador).

Mas como alguém pode adivinhar se é destinado para aquilo? Qual é o segredo para deixar uma carreira estável ou um emprego seguro para se enfurnar em escrever e escrever histórias atravessando madrugadas e manhãs secretamente, sem nenhuma testemunha? Digitar um punhado de páginas, imprimir, encaixar as folhas numa espiral preta, enviá-las para uma editora e sentir um misto de orgulho e medo. Orgulho porque é seu primeiro livro, medo porque não tem certeza se o esforço valeu a pena. Trabalhar e trabalhar, longe de uma recompensa imediata. O que faz alguém acordar de manhã e dizer para si mesmo: “Eu sou escritor”?

Conheça o que dizem alguns autores brasileiros que, a muito custo, conseguiram se impor no cenário das letras. E aprenda a lutar pelos seus sonhos (quaisquer que sejam eles), como eles um dia fizeram.

Cara sortudo?
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Ao tomar nas mãos um livro como os contos de Os Lados do Círculo, de Amilcar Bettega Barbosa, 43 anos, nem se imagina quanto o escritor penou para estar no topo de uma pilha de volumes na livraria. Tampouco que seu autor recebeu a bagatela de 100 mil reais pela obra no prestigiado Prêmio Portugal Telecom em 2005. Mas a predisposição é comentar: “Cara sortudo!” Porém, esse mesmo autor, tão bem resolvido na pequena biografia da orelha do livro, dono de um sorriso cativante na fotografia da aba, poderia ser encontrado atendendo os fregueses do sebo Ao Pé da Letra, em Porto Alegre, no início dos anos 90. Em 1994, Amilcar estava do outro lado de um guichê do Banco do Brasil. Passa mais um tempo, está vendendo seguros. Outro tanto e o autor chegou a ganhar a vida como recepcionista de um hotel na costa lusitana.

Amilcar ainda foi engenheiro civil, profissão que exerceu por cinco anos, fez peritagens em obras no interior gaúcho, sempre escrevendo no tempo vago. Até conseguir se impor no cenário literário, ele demorou muito. Muito mesmo. Como ele relata: “Perdi a conta de quantas editoras para as quais mandei o livro. Foi recusado por todas, até que deixei de lado a idéia da publicação e me concentrei num outro livro, que terminei, enviei à editora e foi aprovado. Só depois de publicado esse livro (que na verdade era meu terceiro escrito) é que voltei àquele segundo, o entravado, Os Lados do Círculo. Retrabalhei o livro, propus de novo à editora, que o publicou. E o livro acabou ganhando o grande prêmio, não é incrível?”
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Nasceu pra coisa?
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Sim, a literatura é incrível, e o que há por detrás dela mais ainda. Vá até sua livraria predileta. Ali, poderá observar uma trinca de volumes de capa preta sob o título em relevo de Inferno Provisório. Romances! O autor é Luiz Ruffato. Poucas informações a seu respeito. É mineiro, tem 46 anos. Mas, ao dedilhar suas obras anteriores, o leitor destrinchará um punhado de prêmios como da Associação Paulista dos Críticos de Arte (três vezes) e Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional. Além disso, o sujeito inspirou uma peça de teatro e está editado na Itália, França e Espanha.

Mas Ruffato, acredite, já foi ajudante de pipoqueiro e vendedor de quebra-queixo aos 6 anos de idade. Depois, pela ordem, atuou como caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil (do setor de algodão hidrófilo), torneiro-mecânico, jornalista, sócio de uma assessoria de imprensa, gerente de lanchonete, vendedor de livros autônomo. E desde 2003 vive apenas da literatura.

Ruffato diz que não deseja mais nada, por isso é capaz de desejar tudo. Que a pretensão dos seus pais, semianalfabetos e pobres de Cataguases (MG), era que ele se transformasse em torneiro-mecânico. “Eu superei qualquer expectativa”, confessa. “Na minha casa havia um único livro, a Bíblia, do meu pai evangélico. Eu só vim a ser apresentado a um livro quando tinha uns 14 anos, e por acaso. Um dia, meu pai conseguiu uma vaga para mim numa escola boa da cidade, onde estudavam os ricos. Eu me sentia um completo estranho no meio daquelas pessoas todas e então passei, por timidez e por exclusão, a circular pela biblioteca, como meio de fuga. Entrava e ficava perambulando por entre as mesas e cadeiras. Até que um dia a bibliotecária me entregou um livro e eu não tive coragem de recusar. Levei-o para casa, li, fiquei doente e daí para a frente passei a ser um voraz e onívoro consumidor de livros”, afirma.
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Fama instantânea?
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Autor de Cinzas do Norte, que vendeu 15 mil exemplares e recebeu os prêmios Jabuti, Portugal Telecom, Bravo! e APCA, o amazonense Milton Hatoum, 55 anos, navega numa maré boa de superlativos. Mas nem sempre a vida lhe sorriu assim. Sua consagração atual esconde uma luta incansável, e nada vã, com as palavras. Ele só conseguiu publicar em 1989 (aos 37 anos, portanto). Tratava-se do elogiado romance Relato de um Certo Oriente, que imediatamente conquistou os leitores mais exigentes.
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Antes, Hatoum estudou arquitetura na USP, estagiou numa construtora, lecionou em faculdade do interior de São Paulo, envolveu-se em projetos arquitetônicos na década de 70, colaborou com a seção de cultura da revista IstoÉ, morou mais de quatro anos na Europa. De 1985 a 1999, entrava em sala de aula como pacato professor da Universidade Federal do Amazonas. Passou algumas temporadas na Califórnia, onde conduziu atividades na Universidade de Berkeley.
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Nada mal para quem fez bicos inimagináveis na Espanha, como cantar nas calçadas de Madri. Ao lado de uma exilada argentina, Hatoum entoava alguns clássicos da MPB para completar o orçamento. “A gente aprende com os erros. Não há nada mais humano que o fracasso. Aprendi a dialogar. Escrevo um manuscrito e dialogo com os editores, os amigos. E aprendo com eles. Acho que ninguém sabe o que vai acontecer com um livro. É um grande mistério. Às vezes é um fracasso total, outras vezes pode cair nas graças do bom leitor. E não há prêmio que substitua um bom leitor, porque ele justifica a literatura. Não esperava ser lido por um grande número de leitores, e isso está acontecendo com o Dois Irmãos. Pensava que minha mãe seria a única leitora. E ela, ao contrário, tinha certeza de que meus livros seriam sucesso de público e crítica. Quis saber por que, e ela respondeu: ‘Você nunca vai saber o que é intuição de mãe’,” afirma ele. .
Trabalho fácil?
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Teimosia é confiança no talento. O escritor gaúcho Charles Kiefer, 48 anos, literalmente correu atrás da máquina. Foi motorista de caminhão, bancário, jornalista, passador de sinteco, vendedor de enciclopédia, datilógrafo, radialista, funcionário de cooperativa agrícola, assessor editorial, instrutor de oficinas literárias, secretário de Cultura de Porto Alegre e sub-secretário de Cultura do estado do Rio Grande do Sul.
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Kiefer já vendeu mais de 100 mil exemplares de sua novela Caminhando na Chuva. Ganhou alguns Jabutis. Outros livros seus viraram argumentos para filmes. Sua ascensão contou com a solidariedade generosa da namorada, na época em que vendia peixes de porta em porta. A mãe de sua primeira filha fingia que não reparava em seu insuportável cheiro de cardume. Hoje ele não cheira mais a mar, mas não abdica de nenhuma das experiências anteriores que o ajudaram a elaborar personagens.

Outrora colono da pacata cidade de Três de Maio, nos rincões gaúchos, Charles Kiefer hoje ensina criação literária a aspirantes a escritores na PUC de Porto Alegre. É capaz de falar com propriedade da importância de partir para a rua e conhecer o mundo como ele é. “Tenho um romance, Valsa para Bruno Stein, que agora virou filme, que se passa numa olaria. Todo mundo me pergunta como é que sei tanto sobre o processo de industrialização primitivo de uma olaria. Ora, entre os muitos trabalhos que fiz na vida, um deles foi trabalhar em olaria, cortando barro, gradeando tijolos, enfornando tijolos, queimando tijolos e, finalmente, transportando os tijolos prontos num velho caminhão F-600. A viagem do escritor tem 5 mil quilômetros, mas é preciso dar o primeiro passo. Se eu escrevesse para ganhar dinheiro, já teria desistido. Eu escrevo para salvar a mim mesmo”, afirma.

Fabrício Carpinejar, na edição de novembro da revista Vida simples.

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