Um dos paradoxos que marcam o cristianismo histórico ocidental está em que, embora os protestantes sejam os grandes e credenciados defensores da graça, são os católicos – grandes e credenciados antagonistas dos protestantes – os únicos cristãos a desfrutar adequadamente dela.
Graça, como se sabe, é a palavra que usam certos autores do Novo Testamento para referir-se ao irredutível cavalheirismo de Deus, sua desconcertante postura de benevolência diante dos nossos maus tratos. Garantem-nos esses autores que é por graça, isto é, por cavalheirismo divino e não por mérito nosso, que dão certo as coisas que dão certo neste mundo. É por graça, e não por algum critério particular de seleção, que Deus derrama sol e chuva sobre justos e injustos; é por graça que as suas misericórdias renovam-se a cada manhã; é por graça, e não por teste de paternidade, que Deus chama-nos de filhos e concede que o chamemos de Pai; é por graça que Deus requer e oferece “setenta vezes sete” rotações de perdão por minuto; é por essa divina graciosidade, arremata o Apóstolo, que “somos salvos”.
Desde sempre a característica mais singular da graça foi essa mesmo, o fato de não podermos fazer coisa alguma para merecê-la. O cerne da “boa nova” cristã está em que não se pode extorquir de Deus aquilo que ele se dispõe a oferecer gratuitamente. Essa portentosa revelação transforma imediatamente em obsolescência e contravenção as mais consagradas práticas de chantagem contra a divindade, coisas como ofertas, sacrifícios e religião.
Curiosamente, os primeiros reformadores alicerçaram o seu discurso sobre essa precisa questão: a Igreja Católica, protestaram eles, havia perdido a graça de vista, construindo um império fundamentado na venda de privilégios e na institucionalização da manipulação divina. Os católicos haviam dado as costas ao coração da mensagem cristã, que garante não haver sacrificío que possa comprar o perdão ou penitência que possa pagar a culpa. Haviam reduzido o cristianismo a uma casca ritual desprovida de vida e vitalidade. Os católicos haviam se esquecido da graça, e os protestantes dedicaram suas vidas a corrigir este erro.
Parece no entanto inevitável que acabemos adquirindo as características daqueles que refutamos mais apaixonadamente. Nos últimos duzentos anos os católicos aprenderam a desfrutar gostosamente da graça, enquanto os protestantes se encarregaram de transformar o cristianismo numa casca ritual desprovida de vitalidade. Resta-nos o discurso, cabe-lhes a herança.
Os católicos crêem que sua Igreja não é contida por templo algum.
Ao contrário dos protestantes e em conformidade com a postura geral de Jesus, os católicos tendem a enxergar o mundo como um lugar eminentemente seguro. Para os católicos nada neste mundo tem como dar errado, realmente errado – e não pelo fato de haver templos católicos em todo lugar (coisa que os protestantes parecem ver como a principal vantagem dos seus antagonistas), mas justamente por crerem, intuitivamente, que a sua Igreja não é contida por templo algum. Os católicos enxergam a Igreja não como um lugar, mas como uma condição inescapável de segurança, algo muito semelhante ao que Jesus descrevia como sendo o reino de Deus.
Como a Igreja está em todo lugar, Deus está em todo lugar e também o serviço cristão. Ao contrário de nós, os católicos vão à missa e não ”à igreja”, porque a Igreja é terreno santo e onipresente do qual não há como escapar. Deus estando em todo lugar, sua proteção é imediatamente acessível, seu poder é inevitável, seu favor é onipresente. Deus e a vida podem ser celebrados adequadamente aqui mesmo, fora das portas do templo, porque não há como fugir da esmagadora segurança da Igreja, que é em ínumeros sentidos outro nome para o seu reino.
Antes de concluir o seu curso preparatório, Dietrich Bonhoeffer, o teólogo alemão que apregoou o fim da religião e morreu num campo de concentração pelo seu envolvimento numa conspiração para assassinar Hitler, visitou Roma e o Vaticano. Ele esperava encontrar-se com a história, mas foi a vitalidade do catolicismo que causou-lhe verdadeiro impacto. O teólogo nunca permitiu-se esquecer a experiência, e menciona em inúmeros sermões e reflexões a integralidade e a universalidade que testemunhou na vivência católica da igreja.
Há uma palavra que, quando ouvida por um coração católico, acende todos os seus sentimentos de amor e de bem-aventurança; ela põe em movimentos as emoções mais profundas de sua sensibilidade religiosa, do pavor e assombro do Juízo Final à doçura da presença de Deus; essa palavra desperta nele os sentimentos mais ternamente domésticos, sentimentos como os que só uma criança pode nutrir com relação à sua mãe: gratidão, reverência e amor sincero; o sentimento que toma conta de uma pessoa quando, depois de uma longa ausência, retorna ao lar, o lar de sua infância.
E existe uma palavra que entre os protestantes soa como algo infinitamente lugar-comum, algo mais ou menos indiferente ou supérfluo, que não faz o coração bater mais forte; que associam a uma sensação de tédio ou fastio ou que, de qualquer modo, não dá asas à nossa sensibilidade religiosa – e no entanto nossa sorte está traçada se não formos capazes de conseguir para ela um significado novo ou um muito antigo. Ai de nós se essa palavra não se tornar relevante novamente, se não tornar-se assunto de importância nas nossas vidas.
Isso mesmo, “igreja” é a palavra cujo significado esquecemos.
E por igreja Bonhoeffer quer dizer a comunidade da graça, a reunião informal e universal dos que se sentem ao mesmo tempo infinitamente seguros e infinitamente desafiados pela incessante credencial divina.
Para o protestante a igreja é um local e uma tarefa.
E sim, os católicos tem as suas novenas, suas velas, suas promessas e seus sacrifícios, mas recorrem a eles e deixam-nos lá, em paz; partem para as suas casas e vivem as suas vidas como gente normal, confiados na improvável graça como um cristão deveria fazer. Não vêem a necessidade, como nós protestantes, de reacenderem seus sacrifícios incessantemente, domingo após domingo após domingo pela eternidade; não vêem a necessidade de dar evidência do seu mérito pela atividade incessante, pelo acúmulo insano de conhecimento e pelos ajuntamentos febris.
Os católicos têm as suas repetições, mas podem recorrer a elas em oculto, na privacidade das suas casas. Têm as suas imagens, mas não se rebaixam com a mesma facilidade ou as mesmas desculpas à ganância, que é idolatria. Têm os seus santos, mas preferem beijá-los do que sustentá-los com dinheiro. Tem as suas penitências, mas conhecem o arrependimento. Tem as suas peregrinações, mas não se rebaixam ao espírito de rebanho – isto é, não seguem todos para um mesmo lugar.
Tudo isso em sonoro contraste conosco, que cometemos a impudícia de, sendo os mais carolas e religiosos, sermos os que mais tagarelam sobre a graça. Para nós a igreja é um local e uma tarefa; para o católico é uma segurança e um estado de espírito. Para nós a graça é um conceito importante; para um católico, é estar vivo.
Paulo Brabo, no blog A bacia das almas.
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11 comentários:
Ainda com o cheiro do pavio da vela apagada no ar, após termos cantado parabéns a você pros 490 anos de 'nosso' protestantismo, nada melhor do que o Brabo pra dar umas estremecidas no confortável banco gospel em que nos sentamos.
A mania perpetuada ao longo de tantos anos e enraizada em nossa cultura e praxis religiosa de que a teoria suplanta a prática, a lei é mais importante que a graça, a letra vale mais que a vida, enfim um grande vício farisáico ... precisa ser estirpada de nossas entranhas - e efetivamente ser pergada na Cruz.
Pelo e para o amor de Jesus - please!
Pavarini que belo texto. Sempre estou por aqui, o nível é excelente. Estou aqui na reflexão, feliz e liberto por tais palavras.
Poste mais e mais...
:)
Paulo Brabo escreve muito bem, mas isso não é verdade. Cada religião tem seus prós e contras posto que é constituida por homens.
Fazer essas comparações como beijar um santo e sustentar(dentro do contexto)outros é um absurdo, porque então ambos estão errados, e não somente um.
Falta de compromisso e levar a vida com Deus como bem nos convém não é viver na graça.A graça é pra ser vivida e não abusada, como díz as escrituras.
Acertas uma boa pedrada nos "protestantes" (ainda que valha a pergunta se muitos de nós merecemos essa identificação), mas floreias e romantizas acerca de nossos nobres irmãos romanos...
Forte abraço!
O argumento do autor é duvidoso e refutável. Ele deveria ler mais a Bíblia e estudar História, é sempre bom adquirir conhecimentos para saber argumentar com mais embasamento.
"Há uma palavra que, quando ouvida por um coração católico, acende todos os seus sentimentos de amor e de bem-aventurança; ela põe em movimentos as emoções mais profundas de sua sensibilidade religiosa, do pavor e assombro do Juízo Final à doçura da presença de Deus;..."
A diferença é que, para o católico, pavor e assombro são sentimentos porque não sabem onde passarão a eternidade.
Para o salvo em Jesus, o Juízo Final provoca qualquer outra coisa, menos pavor e assombro.
muito bem escrito e uma bela pedrada nos protestantes, mas eu acredito que a igreja de Cristo, nao eh nem catolica, nem protestante, eh simplesmente a igreja de Cristo, comprada pelo seu proprio sangue. O grande problema dessa igreja massificada, eh que na pratica, que ela seja catolica e protestante, muitas das vezes ela soh eh crista no nome. Eu tenho varios amigos catolicos que na verdade sao budistas na pratica e amigos protestantes que sao verdadeiros advogados do diabo. Ainda bem que Deus conhece seu povo.
Junior, le bresilien en France
O Artigo acima é desconcertante no aspecto histórico ao afirmar, com acerto, do erro cometido nos últimos 200 anos pela igreja evangélica (prefiro esse nome)quanto a afastar-se das suas origens e cometer erros semelhantes aos que tanto criticou. Agora quanto ao mais é um crasso afirmar que os católicos vivem numa graça abundante em comparação com evangélicos....o que leva homens e mulheres a sairem de seus lares, serem fiéis nos seus dízimos e ofertas e etc é o reconhecimento de que a quem muito foi perdoado muito ama a quem o perdoou (pelo menos os convertidos de verdade). Amar a igreja é acerto e não erro...uma das missões de Jesus foi formá-la e ela é física mas sobretudo espiritual porque é, na verdade, a reunião dos salvos em Cristo. Com todo o respeito que os católicos merecem não é possível afirmar que vivam ou conheçam a graça com base numa vida irresponsável de idolatria desde o princípio dos tempos repudiada por Deus. Seu texto é bem escrito, próprio de quem domina as letras, porém pobre de espiritualidade e fora de nexo quanto a verdade de que arrependimento é ligado a viver na graça e com graça entendimento afastado por clérigos católicos do presente e do passado. Termino dizendo que sinto muito por você e pelos que creêm dessa forma que, a meu ver, é um erro terrível. Um abraço.
A guerra dos mundos, este título cabe melhor nesta peça de ficção. Como é típico para os marketeiros do catolicismo, a miopia do autor é patente e patética: ele ignora completamente o que é ser católico no Brasil, e não faz esforço algum para enxergar. "ait illis erratis nescientes scripturas neque virtutem Dei".
A idealizar a igreja assim, poderiamos ser a igreja perfeita. Ei, Pavarini, pote de noção para ele!
Interessante o texto, porém precisa ser melhor trabalhado, pois nem todos os protestantes acumulam "insanamente" conhecimento, tanto porque, o conhecimento é o que nos liberta das mentiras e dos "ajuntamentos febris" que nos condenam a morte eterna. Outro fato interessante e não mencionado, é que hoje os católicos beijam seus santos e sustentam seus "icones-padres" sim, com seus dízimos, suas quermeces e suas contribuições. Apontar erros sem indicar o caminho dos acertos não produz mudançca, gera ignorancia!
O texto tem algumas críticas interessantes que nós, evangélicos, precisamos ouvir. Porém, peca no tema. A autor não deve ter sido católico e por isso conhece superficialmente daquilo que escreve. Que graça é essa que vivem os católicos quando necessitam recorrer às famosas penitências para se livrar do pêso emocional de pecados praticados? E o que dizer da necessidade de passar um tempo no purgatório para pagar pecados, isso é graça?
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