Todas as crianças querem a paz no mundo, mas nem todas são educadas livres da ótica da discriminação, do preconceito, em condições de encarar, como dotados de igual dignidade, brancos, negros, amarelos e indígenas.
Todas as crianças gostam de falar com Deus, mas nem todas aprendem que Deus ama, sem distinção, muçulmanos, judeus, cristãos, adeptos do candomblé, do Santo Daime, e até mesmo quem não crê.
Todas as crianças necessitam brincar, mas nem todos os pais têm condições de evitar que enveredem pela senda do trabalho precoce, do ponto de esmola na esquina, da exploração sexual, das sendas do crime.
Todas as crianças adoram perder tempo com seus amigos e amigas, mas algumas tornam-se adultas antes do tempo, devido à agenda sobrecarregada imposta pela família, com aulas de balé e natação, de idiomas e de música, sem nunca terem se sujado no barro. Ou, empobrecidas, são obrigadas a lutar desde cedo pela sobrevivência.
Todas as crianças são dotadas de incomensurável fantasia, mas muitas não têm sonhos próprios, porque delegaram à TV o direito de imaginar por elas. Assim, crescem saturadas de (des)informações que não processam, vulneráveis em seu código de valores e confusas quanto aos princípios éticos a serem abraçados.
Todas as crianças são generosas, mas nem sempre há quem lhes ensine partilhar o que acumulam nos armários, na lancheira e no coração.
Todas as crianças precisam de muito amor, mas nem todas conhecem quem preste atenção no que falam e fazem, passeie com elas nos fins de semana, evite barganhar o carinho sonegado por presentes e promessas.
Todas as crianças gostam de doces, mas nem todas são educadas para apreciar frutas e verduras, evitando desde cedo preencher com a boca o que lhes falta no coração.
Todas as crianças adoram ouvir histórias, mas nem todas conhecem quem se disponha a contar-lhes o mundo da carochinha ou a ler para elas os textos sagrados.
Todas as crianças imitam adultos que admiram, mas nem todas aprendem a conhecer Jesus e Francisco de Assis, Gandhi e Che Guevara, e crescem empolgadas com o exterminador do passado, do presente e do futuro.
Todas as crianças são sedentas de alegria, mas como esperar que sorriam se os adultos discutem na frente delas ou expressam seu racismo, seu ódio e sua ganância por dinheiro e bens?
Todas as crianças ignoram a morte como ameaça real, e nenhuma delas se propõe a matar o semelhante, a fabricar ou comercializar armas, a bombardear populações civis. Se uma criança rouba, droga-se ou mata é porque o mundo dos adultos condenou-a a ser o reverso de si mesma.
Todas as crianças adoram sonhar, mas se não encontram pelo caminho quem infle os seus sonhos, como um balão que voa rumo à utopia, correm o risco de buscar na química das drogas o que lhes falta em auto-estima.
Todas as crianças são convencidas de que, entregue nas mãos delas, o mundo seria bem melhor, pois nenhuma delas suporta ver o semelhante com fome, na miséria ou vítima de guerras.
Todos nós deveríamos cultivar para sempre a criança que um dia fomos.
Frei Betto é escritor, autor da obra infanto-juvenil “A menina e o elefante” (Mercuryo Jovem), entre outros livros.
10.11.07
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