24.11.07

Uma cama perigosa

Não acreditava quando minha mãe relatava seus sonhos: fábulas poéticas, coloridas, impregnadas de detalhes e sutilezas impensáveis para o relato de um espírito acordado. Eu que não me lembro dos meus sonhos ou não sonho mesmo. No meu caso, são vestígios, personagens sem nexo e autoridade que penetram no confessionário de linguagem sem deixar alguma repetição que me permita decorá-los.

Culpei a idade materna. Talvez os sonhos fizessem sentido e agrado aos mais velhos, encharcados de arquivos e desejos remexidos. No fundo, julgava que minha mãe inventava seus sonhos para me dizer alguma coisa importante.

Até que comecei a dormir em sua casa, em função da minha necessidade de estar mais próximo do aeroporto e não correr risco de perder os vôos de madrugada.

Foi terrível. Com a mãe na chácara, passei a descansar em sua cama. Cama de casal com travesseiros pesados e altos. Com um travesseiro, já me sentia no hospital. É quase como dormir sentado.

Há um efeito anestésico em seu quarto duro de reprimir, ampliado pelo silêncio orquestrado dos pássaros no pátio. Surgem sons, mas sons maravilhados, contínuos. É entrar dentro de um piano enquanto Beethoven está compondo.

O quarto escurece apenas com as cortinas. As janelas dando de ombros para a intensidade do sol. Como em hotel.

Preocupado com o horário, comecei a perder os compromissos, o check-in e me atrasar ainda mais. Os sonhos são tão reais, que me acordo cansado, como se já tivesse vivido meu dia por antecipação. Recordo dos rostos que vejo, das palavras que digo, das frases que pensei dentro dos sonhos. É uma fidelidade deliciosa e horrível. É como ser visitado pelos mortos e descobrir que não há nada em casa para oferecer. Lembro mais dos sonhos do que aquilo que vivi na data anterior.

O quarto de minha mãe é místico. É santo. Encontrei um atalho para o paraíso - ou ao inferno de não ter sido. Eu me acordo chapado, nostálgico, como quem retorna do exílio e experimenta um longo período de reconhecimento das ruas, dos vizinhos e do próprio ar que respira. Dormir no fim do corredor da residência é escutar um idioma estranho, uma chuva russa, e assistir as vogais escorrendo no meio-fio lomba abaixo.

Tomei drogas na adolescência, nada que se assemelha ao estado de torpor alumbrado que parte daquele quarto, daquela cama.

Sei que minha mãe vai à missa a cada manhã nos últimos cinqüenta anos. Freqüentou todas as capelas e igrejas de Porto Alegre, conhece os horários das paróquias de Petrópolis ao Guarujá.

Ela reza pelos filhos ateus ou não-praticantes. Rezas acumuladas. Economizou Deus e o escondeu debaixo do colchão.

Fabrício Carpinejar / arte de Vermeer

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