Nem todo maldito é sagrado, mas todo sagrado é maldito.
Israel acelerou a sua política de conquista territorial, imediatamente após a queda das muralhas de Jericó. Mas logo no início da empreitada, o projeto atolou na cidadezinha de Ai, que repeliu um regimento organizado para invadi-la. Josué quase se desesperou quando recebeu a notícia de que as suas tropas haviam sido humilhadas.
Ele previra que o seu triunfo bombástico sobre Jericó “derreteria” o coração de seus inimigos, mas perder para a insignificante Ai significou uma desonra; faria com que os "cananeus e todos os moradores da terra" desprezassem os judeus e apagassem o seu nome.
Josué pediu a Javé que lhe esclarecesse o ocorrido. O Senhor respondeu que havia pecado em Israel. Alguém tinha se apoderado dos despejos de guerra da batalha de Jericó. Deus ordenara que a “prata, e ouro, e utensílios de bronze e de ferro” fossem destinados ao tesouro nacional da incipiente nação, e que não seriam propriedade privada de ninguém. Um espertalhão chamado Acã aproveitou para saquear os corpos e as casas destruídas e, depois, escondeu o tesouro em sua tenda.
Acontece que esses tais despojos de guerra tinham sido designados por Javé como “coisas condenadas”, “abomináveis”, “malditas”. Ele chamava os despojos de guerra de “coisas condenadas”, porque as tinha separado para usar na reconstrução de Canaã. Caso fossem usadas para esse propósito previamente designado, aquela riqueza sairia da condição de "maldita" e passaria a ser considerada como “santa” ou “sagrada”.
A palavra hebraica para “maldita” ou "coisa condenada” é exatamente a mesma para "consagrada" . “Charam” pode significar, ao mesmo tempo os dois extremos: "coisa abominável" ou "santificada". Por que, então, que nem todo maldito é sagrado, mas todo sagrado é maldito?
Na religião, o conceito de “sagrado” tem a ver com interdito ou inacessibilidade. Algo é sagrado quando se separam e disponibilizam, lugares, objetos ou ritos, para o uso dos deuses. Nesses casos, somente algumas pessoas especiais têm acesso. O sagrado é também um tabu. Tabus são espaços, dimensões ou compreensões que ficam além do alcance das pessoas comuns; sacerdotes, feiticeiros ou magos, aqueles marcados pelo favor divino, são os únicos que possuem o privilégio de administrá-los ou compreendê-los.
Javé proibira os soldados de roubarem os despojos de guerra porque os considerava sagrados. Eles eram o resultado do seu projeto de libertação e reconquista da terra prometida a Abraão. Para sobrarem daquele jeito, depois da batalha, fora necessário que se derramasse sangue, que mães chorassem a morte de seus filhos e que filhos crescessem órfãos. O judeu que se apoderasse da riqueza que sobejava no campo de batalha, tripudiaria a sacralidade de tanto sacrifício; e seu tesouro se transformaria numa “coisa condenada”.
Da mesma forma, quando uma viúva oferta num culto, seu dinheiro é tão sagrado que é preciso reverência para o seu uso. Quem administrar o dízimo de uma viúva com displicência terá sorte semelhante à de Acã. Quando alguma coisa deixa de ser sagrada e vira maldição? Sempre que a bondade for desprezada, os afetos negligenciados e integridade achincalhada. O aperto de mão oferecido com ternura e esquecido; a bondade retribuida com ingratidão; os fatos distorcidos para o ganho pessoal; a reunião nas caladas da madrugada para trair.
Assim todas as atividades, decisões ou escolhas carregam em si a capacidade de serem, ao mesmo tempo, santas ou malditas, só depende do destino que lhes dermos. Para ser uma bênção, a capa que Acã guardou em sua tenda deveria estar com Josué.
Sexo, dinheiro, poder, fama, sucesso, prosperidade, inteligência, preces, tudo, absolutamente tudo, pode ser ao mesmo tempo uma bênção ou uma maldição. O maldito está embutido no sagrado e depende do coração dos homens e das mulheres.
Soli Deo Gloria.
Ricardo Gondim
22.12.07
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