8.12.07

Porta automática ou Amigo não tem paredes

Eu esperava o instante em que a porta automática iria abrir.

Realmente cresceria em sua passagem, sem ajuda dos adultos.

Uma criança ainda não amadureceu sem atravessar sozinha a porta do shopping. É a verdadeira régua da existência.

Eu me desvencilhava da mãe já no estacionamento, corria na frente para verificar se acionava o dispositivo.

Tinha oito anos. Encostava a boca na imobilidade de vidro e sondava quantos centímetros, quantos quilos me faltavam. Fui um pequeno fantasma. Meu peso não me ajudava, pulava, ameaçava saltar, brincava de saci e a porta era indiferente. Consegui a proeza aos nove anos. Comemorei como quem descobre barba no queixo e passa a tarde esticando o fio para não extraviar sua localização.

Buscamos atravessar a vida de amigos e ela se fecha bem na nossa frente. Como a porta automática.

Paro no tapete, cavo o chão com os pés e sou transparente.

Amigos são raros, conhecidos são muitos. Quer saber qual a diferença entre um e outro? No momento em que começamos a questionar e nos interessar, no momento em que formulamos o que gostaríamos de descobrir, no momento em que percorremos as curiosidades, o conhecido se fecha e o amigo se abre. O amigo tem a paciência de repetir. O conhecido suporta apenas a abordagem inicial. O amigo expõe suas fraquezas como prova de confiança. O conhecido esconde suas fraquezas para não se incomodar.

Amigo é um conhecido com humor. Conhecido não tem humor, pressupõe que está sendo testado. Amigo tem autoridade; conhecido, autoritarismo. Amigo não tem vergonha de dar a mão. Tem a mão mais aberta do que qualquer ferida. Conhecido dirá “chega!” diante da primeira ameaça de invasão. Ao perceber que não tem domínio sobre as respostas, reage com violência. Amigo desarma com o riso.

Conhecido enxerga pedra em tudo, inclusive no bolinho de bacalhau. Amigo come o bolinho de bacalhau. Conhecido leva a sério as bobagens. Amigo faz as pazes com novas bobagens.

Nesta semana, uma amiga ficou irritada quando comecei a fazer perguntas. Conversa de bar, alegria de colecionar bolachas sobre a mesa. Argumentava que a memória é submissa. Minha tese: o desejo manda na memória, guarda ou esconde as lembranças dependendo do seu interesse. Ela confessou de que se lembrava de tudo. Argumentei que não era possível. Citei um exemplo e ela explodiu. Transbordou aspereza, como se estivesse saqueando sua história sem autorização.

“Pára de perguntar, não me interessa responder!”

Um pouco mais e me pedia para apresentar um mandado de segurança. Avermelhou, não usou o elevador da palavra, subiu o pescoço pela escada. Seca e incisiva. Uma mulher linda, quando rude, é muito mais grosseira.

Lógico que confundi sua reação com uma brincadeira. Tentei oferecer um abraço e ela foi ainda mais contundente. Demorei a entender que era sério.

“Fica com suas esquisitices! Não quero participar delas.”

Eu me calei, constrangido. Não havia motivo para a desproporção de sua raiva. Notei que não a conhecia, conhecia sem conhecer, foram cinco anos com a aparência tranqüila de intimidade por e-mails ou cafés. Não era intimidade. Muito menos desejava se apresentar.

Ela não se desculpou ou lamentou. Achou muito natural. Seu orgulho era maior do que a amizade.

Avisou que fui agressivo, que a emparedei.

Não, não a emparedei, ela era a parede.

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arte de Jean Arp

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