16.12.07

Religião é uma das coisas + nefastas

Ao chegar ao escritório de Amyr Klink, cheio de livros e reproduções de barcos, ele mexia com peças de mecânica e pediu uns minutos, antes de me receber em uma sala bastante ampla. Uma mesa diferente chamava a atenção. "É de um material mais leve que madeira, que a gente usa nos barcos", explicou. Fazia calor, e ele comentou que gosta do inverno. Não me admira: ele já foi diversas vezes à Antártida, levando até as filhas pequenas.

Nas duas horas de conversa ele confirmou minha impressão de que é, decididamente, um homem racional. Apesar de se dedicar a uma atividade que remete à contemplação e à liberdade, ele esclarece: "Velejar é lindo, mas é um trabalho descomunal". A fantasia que existe sobre navegação como uma grande aventura, avisa, não faz sentido. "Meu trabalho requer cálculo, precisão e muita dedicação".

Amyr contou, então, como começou seu interesse pelo mar e, acidentalmente, por escrever. "As pessoas têm necessidade de criar rótulos. Não se aceita que o sujeito seja bom de mecânica e de caneta." Espirituoso, não entende porque o chamam de contador de histórias. Quem passa alguns momentos com ele logo compreende o porquê dessa fama.

O que você pensa do aquecimento global?

A Terra já foi muito mais quente do que é hoje, mas a gente não existia. Atualmente temos um alto componente de responsabilidade e esse é um fato inédito na história da humanidade. Talvez seja a primeira vez em que enxergamos o efeito de nossas próprias ações numa escala de tempo visível. E que soluções, a seu ver, podem ser adotadas? Temos um dispêndio de energia por indivíduo muito alto. Não é viável. Não dá pra todo mundo ter um carro, talvez nem uma bicicleta. Então é preciso pensar em modelos diferentes de existência. E esse é um desafio de que eu gosto. Eu sei sobreviver com quatro litros de água por dia, não preciso gastar um metro cúbico, como a média das pessoas.

Como surgiu, em você, esse espírito aventureiro?

Eu nunca gostei [sic] do termo aventura, porque significa sair sem saber se vai voltar. Eu gosto de andar em lugares difíceis, mas também de ter a certeza de poder voltar. A minha primeira grande viagem foi acompanhando meu pai que estava a trabalho, para Manaus, um navio meio cargueiro, que tinha sido de prisioneiros. O negócio deu tão certo que ele largou a gente e voltou de avião... Mas eu fui descobrir o mundo dos barcos, do mar, pelos livros. Estudando literatura francesa e literatura de viagens.

Foi esse contato com os livros que o levou a escrever suas memórias?

Eu não tinha uma paixão por escrever, não sabia que gostava disso. Minha mãe escrevia em cinco idiomas e meu pai, em sete. Por isso, eu não tinha coragem de mostrar nada do que eu escrevia. Mas ele alimentou a gente com ingredientes importantes: que é necessário ler pra fazer o que eu faço, e que é importante escrever também. Agora, a gente vive num país engraçado, onde ninguém admite que você possa ser bom de mecânica e de caneta. Existe um preconceito. Eu faço uma boa regulagem de carburador e também sei escrever. É uma atividade que dá prazer.

Para você, a solidão é um estado de espírito?

Eu não faço nada sozinho, mas amo uma viagem solitária. Uma volta ao mundo sozinho, pra mim, é a expressão máxima da competência humana. Não só a competência física e intelectual, mas a capacidade de administrar uma máquina frágil, delicada, que pode quebrar a qualquer momento. Você sente medo no mar? Sim, mas esse é um problema que a gente administra. A caminho da Antártida, não foi descendo onda de 20 metros que eu senti mais medo. Foi num dia de sol, absolutamente paradisíaco, com aqueles golfinhos andando ao lado do barco, com as filhas brincando no convés com outras crianças, filhos de amigos que não estavam a bordo. Aí se entende o que é responsabilidade.

Qual é o maior problema nessa área de navegação?

Não dá pra falar só de navegação.O que eu faço envolve política, corrupção, burocracia, tecnologia, escola. A grande diferença do que eu faço com relação aos franceses, ou aos neozelandeses, é que lá eles compram um barco na esquina, fazem um projeto novo, contratam uma pessoa. Aqui a gente faz tudo do zero. Constrói o estaleiro, forma os profissionais, desenvolve as máquinas, constrói os barcos, o sistema de portos e marinas, corre atrás da legislação para regulamentar, faz seguro. E no final, vai pra Antártida. É um processo complexo, de dificuldades estruturais.

Você tem algum espírito de religiosidade?

Eu acho religião uma das coisas mais nefastas do ser humano. Mas não sou contra a religião. O senso religioso é importante, mas a religião, como uma bengala pra você se apoiar das dores, dos fracassos, acho uma bobagem.

Nem em momentos de tensão no mar?

A última coisa em que você pensa quando tem uma dificuldade, em um lugar distante do mundo, é em Deus. Eu acho que acreditar em Deus deve ser como navegar: você tem que dar mais do que receber. Arregaçar as mangas, não dormir e sair dali.

fonte: Estadão
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colaboração: Cíntia Rojo

Um comentário:

Anônimo disse...

as pessoas tendem a achar que a religião é uma bengala, mas nosso relacionamento com Deus tira todas as nossas bengalas e nos leva à liberdade. ele tira nosso apoio para que sejamos livres. as vezes as bengalas sao idolos que dançam dentro de nós diariamente.

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