15.12.07

Saco cheio de rótulos

“Os conservadores não são necessariamente estúpidos,
mas quase todos os estúpidos são conservadores.”
John Stuart Mill
.
O discurso dos conservadores me dá tédio. Como o próprio termo denuncia, eles dão-se por satisfeitos simplesmente em “conservar” as coisas. Desprezam e combatem os apóstolos auto-ungidos, mas também se auto-arvoram guardiões da ortodoxia.

São uma espécie de versão ambulante do Google. Você digita a palavra-chave de alguma novidade que rola por aí e eles batem o martelo: “No ano de 1254, havia um ignorante que pregava essa mesma idéia estapafúrdia. Viu como não há nada de novo debaixo do sol?”

Nesse ponto, a ala dos passistas conservadores tem razão. Se dependesse da criatividade do grupo, por exemplo a inovação artística seria reduzida a sapateados fora do ritmo. Naturalmente, a performance sempre é provocada pela ira ao ler algo “perigoso” para a igreja que o herege da hora (sem trocadilho) escreveu.

Ao contrário do que apregoa o adágio, o leite derramado lhes proporciona um indisfarçável prazer de entrar em ação. Com o advento da internet, descobriram que não estão sozinhos em seus posicionamentos intransigentes. Falam a centenas de pessoas na rede... e a centenas de cadeiras em determinados eventos e reuniões.

Seria injusto afirmar que desprezam a arte. Na verdade, exercitam sua verve criativa na “releitura” dos hinetos ou corinhos que, num ato de insuspeita generosidade, permitirão à igreja entoar. Cortam frases, trocam palavras e submetem cada linha ao crivo exegético, hermenêutico e doutrinário. Reis da logomaquia, têm maior prazer em dissertar sobre a má qualidade das composições do que em propriamente cantá-las durante as celebrações, ops, durante os cultos solenes.

Vivessem no Paraíso com Adão e Eva, e os animais permaneceriam sem nome até hoje, dado o número de concílios, simpósios, conclaves e outros nomes dados aos soporíferos encontros para discutir assuntos importantes como a quantidade de anjos que cabem na cabeça de um alfinete.

Do ponto de vista do raciocínio cartesiano, esses “alfinetadores” consideram-se “engenheiros”. Se analisarmos o declínio de certos grupos dos quais participam, talvez possam ser chamados de “coveiros”.

Os conservadores protagonizam uma estranhíssima espécie de casamento no qual o marido parece preferir levar para a cama a certidão de casamento, deixando a esposa a ver navios. Ou melhor, garfos, facas e panelas. O desvelo pela ortodoxia parece estranhamente não encontrar similaridade na devoção pelo próprio Jesus.

Do outro lado

“Raspe a tinta de um liberal e você encontrará
um fundamentalista alienado embaixo dela”
Renny Scott, citado por Brian McLaren
em Uma ortodoxia generosa.

A situação também não é muito animadora no grupo dos liberais, a despeito do clima descontraído dos convescotes dos caras. Ao contrário do que rola na facção conservadora, na qual as “cartas” parecem estar dispostas à mesa, do outro lado elas permanecem na manga e em outros esconderijos.

Acostumados a analisar tudo pela aparência, muitos incautos quebram a cara (e a fé, em vários casos), quando o objeto em questão é um liberal. A calça moderninha, o vocabulário cheio de gírias e o estilo casual transmitem a sensação de proximidade e de acolhimento. No entanto, na hora de administrar seus grupos alguns liberais arrepiam mais que seus cabelos quando livres do gel. Defendem suas idéias e propostas com a elegância de um pit bull em jejum prolongado.

Hábeis com as palavras e pseudopublicitários, são sempre receptivos às novidades. Contudo, a estratégia de eliminar filtros escancara portas para certas práticas que beiram a heresia. Sem limites nas extravagâncias, não têm problemas com certos meios se ao final forem pessoalmente beneficiados.

A fama de liberal parece desobrigar seus detentores da necessidade de aprimorar os conhecimentos. Para compensar a tibieza nesse item, exibem um ego tão inflado que mandaria qualquer pavão para o veterinário-terapeuta.

Na falta de idéias próprias, vivem despejando citações alheias, de preferência perpetradas por pensadores que fujam do lugar-comum. São capazes de mencionar a Tati Quebra-Barraco em uma prédica, digo, reflexão, só para mostrar o quanto são “antenadinhos”. Na verdade, estão mesmo é “atoladinhos” em suas idéias fixas e convicções tão consistentes quanto gelatina fora da geladeira por várias horas. Às vezes, é preciso conservar...

Julgando-se incompreendidos e flagelados pelos opositores, murmuram sem cessar as cantilenas de sempre, especialmente quando praticam seu esporte favorito, a caça aos conservadores. Liberais pós-modernos sabem que a prática esportiva faz bem muuuito bem para a saúde!

Epílogo

De longe, toda montanha é azul
De perto, toda pessoa é humana

Dom Pedro Casaldáliga


Se você chegou até aqui na peroração, por certo identificou um sem-número de exageros e extrapolações carentes de fundamentação. Exatamente o que ocorre todas as vezes que recorremos a rótulos para classificar alguém. Sem identidade, fulano passa a ser simplesmente o “fundamentalista”, enquanto sicrano é “liberal”.

O rótulo esconde completamente a pessoa e suas idéias serão analisadas de forma tendenciosa ad infinitum. Em decorrência, as barreiras erguidas são robustas e contribuem para a desintegração cada vez mais crescente de um povo que deveria ser “um só rebanho”. Haja pasto para acomodar tantas vertentes aparentemente imiscíveis...

Valorizamos tanto a homogeneidade dos tons que até o arco-íris deixou de fazer parte da simbologia cristã, bem como a bandeira da “diversidade”. Em ambos os lados do front, prepondera uma posição beligerante e inflexível. Filhos do mesmo Pai tornam-se figadais inimigos e o amor é substituído pelo desprezo e pelo ódio disfarçado.

Como lembra o bispo N. T. Wright, “compreendemos melhor alguma coisa não meramente criticando, dissecando e duvidando dela, mas também confiando, amando e respeitando-a”. E conclui: “Quando crítica e questionamento vêm no contexto do amor, elas produzem ainda mais percepções”.

O mundo não está em busca de idéias e princípios defendidos com ardor extremado. As pessoas aguardam Deus “com gula”, segundo a inspiração de Arthur Rimbaud. A simplicidade das “boas notícias” perdeu-se em meio aos embates. O saco cheio de rótulos deve ser esvaziado para que possamos voltar a sentar à mesma mesa, evidenciando a todos que o amor de Jesus suplanta quaisquer divergências de opinião.

Tenho ciência da puerilidade aparente deste discurso ao observar tantas feridas purulentas decorrentes de inúmeros confrontos. Contudo, sei o quanto Deus se agrada ao descobrir traços de pureza no coração de seus filhos. Da mesma forma que “Abraão, contra toda esperança, em esperança creu”, essa certeza me motiva a exercer meu sacerdócio espicaçante... pero sin perder la ternura jamás. Afinal, de acordo com a licença poética de Frei Betto, “o amor dura enquanto é terno”.

texto meu que sairá na próxima edição da revista Eclésia.

4 comentários:

luciana disse...

"Um Deus" tbm se despiu de todos os seus títulos pra poder estar perto de nós, se envolver conosco, porque nos amava e seu único objetivo era nos salvar.
E nós...

Que texto ma-ra-vi-lho-so!!

Anônimo disse...

eu dou o maior apoio à liberdade, ate pq Deus conhece o nosso coração, se nao usarmos a liberdade como desculpa para a rebeldia, acho que td é valido. (afinal, a rebeldia é pecado).o legal é usar a liberdade para conhecer mais de Deus. pois essa é uma caracteristica de Deus, Ele respeita a liberdade.
agora, lá vai o meu desabafo. tem coisas polemicas nas panelas, por exemplo, muitos cristaos consideram traicao ouvir musica secular. eu acho uma bobagem, pois mesmo cortando a musica, o problema do pecado continua. acho que essas decisoes devem ser pessoais, mas muitas igrejas nao veem assim. por isso voltamos à liberdade. nós a possuimos, agora, temos que ver o que fazer com ela. como sempre ouvimos do abujamra: "enforque-se nas cordas da liberdade". ou use-as para a sua salvação. acho que é isso...
pavarini, continue nessa sem perder o foco!

Anônimo disse...

De saco cheio

É isso ai Pava. Equilíbrio. Saber ouvir e respeitar o outro. É isso que nos ensina as escrituras. Sempre me espantou, enquanto cristão, o fato de ver pessoas tão tendenciosas em julgar o outro e rotulá-lo. Quando eu era do “mundo”( desculpe a caretice pentecostal) eu fazia amizades nos bares da vida e abríamos o nosso coração mutuamente com uma facilidade impressionante. Já na minha vida como cristão me sinto como um franco-atirador solitário. Numa guerra terrível e onde o meu maior inimigo sou eu mesmo.

É tão difícil, para mim, falar coisas que sinto com outro cristão. Todas as vezes que tentei me decepcionei. Acabei de ler a entrevista do Paulo Henrique Amorim ao Oscar Niemeyer e pude ver num cara que se diz ateu um coração muito mais humano,sensível, preocupado com o outro, em não ferir o outro, (o cara diz-se na entrevista incapaz de criticar um colega de profissão) do que em muitos cristãos conservadores ou liberais( no fundo tão iguais). Devemos levar em conta que o cara tá fazendo 100 anos, e já está bem mais “acabado” do que nós, que estamos em obras ( e o sujeito ainda por cima é arquiteto nê?).

Enfim, nós como cristãos temos muito ainda o que aprender com as escrituras, principalmente com as cartas paulinas, especificamente quando escrevia aos romanos 15:7 e dizia: “Portanto ( referindo-se ao contexto do capitulo 14 e inicio do 15 ) aceitem-se uns aos outros, da mesma forma que Cristo os aceitou,”.

Abraços fraternais
Em Cristo
Teu aprendiz de servo
Wladimy De Morais.

Anônimo disse...

Xará, vc mexeu num ponto problemático da igreja: a Guerra dos Feudos!

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