26.1.08

O Evangelho decomposto

“Já se terá adivinhado o que se sucede com tudo isto e sob o véu de tudo isto: esta tendência a se torturar a si mesmo, esta crueldade contra si mesmo do animal homem, introduzida em sua vida interior, retirando-se com espanto de sua individualidade, encerrada no ‘Estado’ para ser domesticada, e que inventou a má consciência para se flagelar, desde que a via natural deste desejo de fazer o mal lhe foi cortada; este homem de má consciência apoderou-se da hipótese religiosa para levar seu próprio suplício a um grau espantoso de dureza e agudez.”
F. Nietzsche, Genealogia da Moral

“Para enriquecer Deus deve-se empobrecer o homem; para que Deus seja tudo, o homem deve ser nada”.
L. Feuerbach, A essência do cristianismo

“Eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância.”
Jesus, Evangelho de João 10.10

O Jesus dos Evangelhos se apresentava como autoridade racional, negando sempre e categoricamente a alternativa fácil de arrebanhar multidões com poderes sobrenaturais ou a de despertar nelas um temor tal que as impelisse a alguma espécie de cega submissão. Sabia-se pastor de ovelhas e não de rebanhos cegados por qualquer ofuscante luz transcendente. Conhecia a estreiteza do caminho e a indispensabilidade da individuação.

Jesus não se interessava em exercer qualquer poder que colocasse medrosas multidões em estado de silencioso servilismo. Preferiu o penoso, longo e demorado trajeto do convencimento íntimo de cada homem, respeitando radicalmente sua liberdade e sua idiossincrasia; submeteu assim sua própria autoridade a uma crítica não apenas desejável como necessária.

Mas em algum momento da história de sua interpretação o Evangelho que promete vida abundante se decompôs em ética autoritária, sua personagem central em uma autoridade irracional e arrogante; este Evangelho esvaziado de seu anúncio fundamental é que sofria as críticas de Nietzsche e Feuerbach, um Evangelho cuja meta vital é o empobrecimento do homem, o estímulo do sacrifício que alimentará a bocarra do Sagrado.

O mesmo Evangelho decomposto em ética autoritária ajudará a distorcer o conceito clássico de virtude. Erich Fromm lembra-nos afirma que Aristóteles empregava a palavra virtude para referir-se a excelência; o virtuoso seria aquele que assume a responsabilidade pela sua realização pessoal, o homem que explora todas as suas potencialidades, sempre partindo do princípio de que bom é aquilo que é bom para o homem, e mal é aquilo que é nocivo a ele. A contrario senso, naquela distorcida versão do Evangelho, o virtuoso passa a ser aquele que transfere a outro a definição do que é bom e do que é mau, e vive exemplarmente e em sacrifical obediência de acordo com aquelas definições alienígenas.

Alguém poderia propor que uma ética que parta do princípio de que bom é aquilo que é bom para o homem, e mal é aquilo que é nocivo a ele, não é, em absoluto, uma ética adequada ao Evangelho, pois sublinharia a individualidade e, em última instância, permitiria o desenvolvimento de um egoísmo que se opõe cristalinamente ao espírito geral do Evangelho. O nosso interlocutor estaria correto apenas se conseguisse provar que o egoísmo é realmente bom para o homem.

O mais lamentável na equivocada leitura que reduziu o Evangelho a uma ética autoritária foi seu êxito em obscurecer o cerne da mensagem evangélica de salvação, qual seja, sua irrestrita vocação em libertar o homem a partir de dentro, em ajudá-lo a encontrar em si o manancial de onde brotam os rios da Vida Plena (Jo 7.38).

Alysson Amorim

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