Conforme a tradição brasileira do “homem cordial”, a individualidade serve como refúgio às adversidades do convívio social. Na verdade, prevalece o oposto: bondade, concórdia e simpatia são anteparos à grosseria e ao conflito. Um dos mais extraordinários clichês dessa cultura das boas maneiras preconiza que “religião e política não se discutem”.
Estes seriam domínios privados imunes às ameaças externas, especialmente a política –– campo privilegiado para a ação das elites tradicionais. No prefácio de “Raízes do Brasil”, Antonio Cândido adverte que “Sérgio (Buarque) deixou claro que só o próprio povo, tomando a iniciativa, poderia cuidar de seu destino”. O ensinamento permaneceu para quem quisesse apreendê-lo e a obra, imortalizada.
Essa reflexão abstrata ganhou força material na edição 478 da revista CartaCapital, na qual desfilam matérias sobre Kaká, o craque eleito melhor do mundo, e José Dirceu, o político. Dois personagens tão públicos quanto supostamente diferentes, um (puritano) vinculado à religião e outro (mundano) ao mundo da política.
A reportagem do jornalista Paolo Manzo (“Fé, família e dinheiro”) aborda os vínculos do astro do futebol com a igreja Renascer em Cristo, da qual é fiel e adepto do dízimo. Como se sabe, essa instituição é comandada por Estevam Hernandez Filho e Sonia Haddad Moraes Hernandez. O casal foi preso em Miami com malas de dólares, episódio que rendeu investigações e processos para os quais Kaká foi chamado a depor como testemunha.
Não, não se trata de perseguição de invejosos contra o justo prestígio conquistado por Kaká ou de conspiração de corintianos, é apenas investigação movida por um promotor público. O “apóstolo”, diz a matéria, doaria R$ 2 milhões anuais à igreja. Ora, o dinheiro é privado e seu dono faz dele o que quiser, certo?
Errado. A instituição religiosa é isenta de impostos e seu funcionamento regulamentado por lei. Mais grave: todos os indícios revelam que a sonegação corre solta, desviando-se R$ 130 milhões captados pela Renascer para o patrimônio pessoal do casal Hernandez. O que se deve discutir, portanto, não é a fé individual dos adeptos de qualquer religião, mas, antes, como funcionam as instituições e se estas – inclusive as religiosas – respeitam a legislação e sabem discernir o interesse público do privado. Seria pedir muito?
Na mesma edição, Mino Carta comenta a polêmica entrevista de José Dirceu à revista Piauí. Já no título, “E onde fica a razão da política?”, questiona a exposição desnecessária à qual Dirceu se impôs. Não valeu a pena! Por que? Simples, porque Dirceu simplesmente tornou públicas fraquezas pessoais e políticas. Ao contrário do que vaticina o senso comum, sobretudo o midiático, Dirceu se revela um não-leitor e um não-discípulo de Maquiavel ao descumprir os ensinamentos elementares sobre a importância das aparências e, principalmente, as razões que envolvem a política – e a principal delas: o poder.
Se o problema, no caso, reside no campo das fraquezas, a principal delas foi, sem dúvida, a vaidade. Um sopro de desabafo somado à ambigüidade provocada pela notoriedade. Também neste episódio repõe-se a centralidade das relações entre público e privado, o que importa ao bem comum e o que é irrelevante. Os temas que envolvem a política certamente se enquadram na primeira categoria, afinal política deve, sim, ser discutida.
Nos dois casos, ponto para CartaCapital, que soube trazer ao debate o que é relevante e efetivamente público.
Jefferson O. Goulart é cientista político e professor universitário
fonte: Jornal de Piracicaba [via blog Telegrama Cult & Diversão]
22.1.08
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Um comentário:
a reportagem da carta capital sobre kaka é um lixo! uma vergonha!
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