23.2.08

Cristãos radioativos

O primeiro capítulo do livro de Atos dos Apóstolos narra uma das separações mais dramáticas da história, a ascensão de Jesus ao céu diante dos olhos marejados e perplexos de seus discípulos. A cena inspirou artistas plásticos e poetas ao longo de dois milênios; no que me diz respeito sua encarnação mais notável é a seqüência final de E.T., o Extraterrestre (Steven Spielberg, 1982), em que Elliott e seus familiares, embalados por uma fantástica brisa sublunar e pela trilha sonora espetacular de John Williams, observam a nave de E.T. desaparecer no céu estrelado deixando um rastro que é um arco-íris quase horizontal.

Steven Spielberg já deixou muito claro que E.T. não deve voltar à terra numa continuação, e esperemos que fale sério; Jesus, ao contrário, assegurou aos seus fãs que retornaria. Quando se leva em conta que Atos é uma Parte 2, uma declarada continuação do evangelho de Lucas, deve ficar claro que trata-se de uma continuação cuja dramaticidade é imediatamente prejudicada pela ausência do protagonista da Parte 1.

É como se Spielberg resolvesse filmar uma continuação de E.T. em que o próprio E.T. não aparecesse na tela em momento algum. Poderia ser até um grande filme, mas muita gente sairia do cinema sentindo-se traída; a expectativa de um fã/seguidor é ver a tela cheia com o rosto familiar do protagonista – ou contar pelo menos com o consolo de saber que seu nome não está sendo usado em vão numa continuação que nada tem a ver com ele.

O momento mais importante da narrativa é portanto este, o da seminal cisão na experiência da humanidade com Jesus. “E, quando dizia isto, vendo-o eles, foi elevado às alturas, e uma nuvem o recebeu, ocultando-o a seus olhos.” Terminara visivelmente a era do Jesus terreno e começava uma inconcebível outra, em que o Filho do Homem angariaria uma nova fama e um novo nome. Os protagonistas do livro de Atos teriam de conviver, pela primeira vez, com a idéia e com as implicações de um Cristo extraterrestre.

Em termos históricos, o Jesus terreno é o indomável rabi de pés empoeirados que contava histórias cheias de ironia, bebia com agiotas e tinha os pés massageados por prostitutas. É o homem que desdobrava bem-aventuranças, dizia que os pecadores são gente mais notável do que os carolas e ensinava que para serem dignos de Deus (”filhos de Deus”, ele dizia) seus seguidores deveriam amar os seus inimigos e emprestar sem esperar receber de volta. O homem muito real que comia, chorava, abraçava, dormia, pedia água, sangrava e morreu.

O Cristo extraterrestre é o Jesus ressurreto e coroado de glória, ausente em pessoa porque está presente no céu, sentado no lugar de absoluta honra à direita de Deus. É o Jesus dos hinos de Paulo, o Adão que deu certo, o irmão mais velho de uma nova e afortunada geração, o admirável Senhor em quem reside, vertiginosamente, “toda a plenitude”. É o Verbo cósmico de volta ao seio da divindade; é o Messias sofredor em sua nova carreira de Rei da Glória.

O Cristo extraterrestre é o Jesus de todas as teologias tradicionais: o grande Salvador, o grande Senhor, o grande e terrível Unigênito de Deus. É o interventor que intercede constantemente em favor da justiça, o Filho que merece a admiração incessante do Pai (e portanto do universo), o juiz que aguarda impaciente o momento de retribuir, o derramador de graça em nome de quem são feitas todas as orações. É um homem espiritual, e os teólogos não estão certos sobre se restam em seu corpo espiritual cicatrizes da terra.

A partir deste ponto, como veremos, a narrativa de Atos (e na verdade todo o restante do Novo Testamento) só terá aparentemente olhos e ouvidos para o Jesus extraterrestre, o Cristo ressurreto. Se digo “aparentemente” é porque espero que quando os testemunhos forem devidamente ouvidos não seja realmente assim. Se o Jesus terreno era o sujeito notável que penso que era, deve ser possível encontrar traços de sua radioatividade nas aventuras posteriores dos seguidores do Cristo extraterrestre.

trecho de O Jesus terreno e o Cristo extraterrestre, texto do Paulo Brabo no blog A Bacia das Almas.

Um comentário:

Alysson Amorim disse...

Extraordinário!

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