9.2.08

Falta alienação

É preciso alienar-se. Alienar é evitar um a priori, que é aquele velho hábito de manter o controle através da razão. Já se esqueceu, infelizmente, que o próprio movimento filosófico que enfatizava a explicação racional da vida recebeu apelidos metafóricos bastante distantes de uma racionalidade insensível, como “Luzes” e “Ilustração”.

Ambas expressões guardam em seu sentido, momentos memoráveis de quando a humanidade vivia a aurora de um novo tempo, onde o passado foi reconhecido como “Trevas” diante do lúmen de novas experiências, que embora nascidas no crepúsculo dos séculos escuros, davam a sensação da iminência de uma nova era.

Pura alienação! Rejeitaram o a priori do establishment em prol do sentimento de viver diferentemente. Apostaram, pois, no sentimento. Afinal, a razão foi, antes de tudo, uma alienação, uma ilustração, uma luz, um sentimento. Era, então, um a posteriori, não um a priori. Já nasceu com uma intenção: desejar um requiescat in pace para o velho mundo, o velho sentimento.

Quando Fernando Pessoa diz que “pensar é querer transmitir aos outros aquilo que se julga que se sente”, ele proclama uma crítica aos agora chamados “ilustrados”, que se pretendem racionais, pensadores, homens da ciência. Ao pensamento, que se apresenta claramente como um juízo de valor sobre um sentimento — “pensar é limitar”, adverte Pessoa —, foi dado um lugar de prestígio na guerra política dos cientistas contra os sacerdotes.

Como se sabe, desvendar os arcanos sempre foi o objetivo dos alquimistas, que produziam criptologias nos tempos medievais, enquanto que o clero, sentado no trono dominante, produzia “verdade” sob a chancela da igreja, representante divina no mundo.

Nos tempos modernos, ocorre o inverso. Agora são os cientistas que produzem “verdade” baseados na existência de uma razão em todo o ser humano. Aos “religiosos” restam as lucubrações de uma cripto-teologia escrita ao som do réquiem diante do túmulo de Deus.

Este é um histórico conflito entre ciência e religião que revela o quão distante se está de conceber “Verdade” como “uma idéia ou sensação nossa, não sabemos de quê, sem significado, portanto sem valor, como qualquer outra sensação nossa” (Pessoa). Brigam por uma “verdade”, mas não admitem uma “Verdade” como sensação. Difícil lhes será, assim, perceber que, no fundo, “a verdade não existe”, como admite o pensador lisboês.

O fato de a verdade ser relativa não diminui seu valor, porque “nós temos a idéia” de verdade. E isso é importante, já que essa “idéia” é uma sensação, por isso, alienada. Eis o segredo da vida! O sentido da verdade corresponde ao que eu sinto, à minha condição de alienar-me. Por isso, não existe verdade, existe uma sensação de verdade.

O mesmo se pode arriscar dizer: não existe vida, existe uma sensação de vida. (Para des-crédito cartesiano, diria: Sinto, logo existo.) Dói aos tímpanos da tradição racionalista ouvir coisa assim. Falta alienação.

Felipe Fanuel

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