Diz o folclore que perguntaram a Rui Barbosa a fonte de sua erudição. E Ele teria respondido: "Leio Vieira". Insistiram: "Além de Vieira, o senhor lê quem mais?" Rui Barbosa teria replicado: "Leio Vieira novamente".
Rui Barbosa referia-se ao jesuíta Padre Antônio Vieira, nascido em Lisboa a 6 de fevereiro de 1608. Quando ainda estava com seis anos de idade, seus pais se transferiram para a Bahia e o matricularam no colégio dos Jesuítas, onde Vieira aprendeu a ler.
Com vinte e sete anos e já conhecido como um exímio latinista, eloqüente pregador e ativo abolicionista, Vieira voltou para Portugal, convidado a ser pregador na corte de Dom João IV.
Vieira foi um defensor dos negros, um batalhador incansável contra o extermínio dos índios e uma ameaça constante aos poderosos do clero. Depois da morte de Dom João IV, seu protetor, Vieira foi caçado pelo Santo Ofício, em Coimbra; sofreu um processo que durou quatro anos e meio, dos quais dois anos e quase três meses, passou incomunicável num cubículo de quinze palmos por doze, sem receber luz senão através de um corredor.
Em 27 de janeiro de 1681 voltou à Bahia, depois de quarenta anos de ausência. No berço nostálgico da sua terra afetuosa, preparou doze volumes de sermões e faleceu em 18 de julho de 1697, aos 89 anos e cinco meses de idade.
Dobro-me diante da erudição, argúcia e inteligência de Vieira; ele foi um gênio, um homem à frente de seu tempo, um sábio de raríssima grandeza.
Alguns pensamentos de Antônio Vieira são tão notáveis que precisam ser lembrados.
Sobre a grandeza de acolher o conhecimento alheio
"Quantos julgadores há que, no voto, ou na tenção, ou na sentença, reputam por descrédito o retratar-se, e seguindo o ditame ou seita de Pilatos têm por timbre o dizer: Quod scripsi scripsi! E também pode ser que haja algum, o qual sem reparar em que se condena não se retratando, ou pela inveja de que outro votou melhor, ou pela soberba de não confessar que errou, não tema acompanhar a Lúcifer no castigo como o imita na contumácia.
O retratar-se não é argumento de não saber, mas de saber que muitas vezes poder acertar o menos douto no que o mais letrado não advertiu. Que comparação tinha na ciência Jetro com Moisés? E contudo conheceu Moisés o ditame de Jetro era mais acertado, e logo retratou o seu e seguiu o alheio…
Não era Moisés nem Agostinho como aqueles que defendem obstinadamente o que uma vez disseram, só porque o disseram; mas porque só buscavam e amavam a verdade, em qualquer parte que a achavam, e de qualquer boca que a ouviam, a seguiam e abraçavam sem contenda nem controvérsia.
O verdadeiro saber é de saber reconhecer a verdade ainda que seja filha de outros olhos ou de outro entendimento, e não se cegar com o próprio."
Sobre a limitação da Onipotência Divina
"O poder tudo consiste em poder algumas coisas, e não poder outras: consiste em poder o lícito e o justo, e em não poder o ilícito e injusto; e só quem pode e não pode desta maneira é todo-poderoso. Não é paradoxo meu, senão verdade da fé divinamente explicada por Santo Agostinho: Quam multa non potest Deus, et omnipotent est? E se não dizei-me: Deus pode deixar de ser? Não: Deus pode mentir? Não: Deus pode fazer alguma coisa malfeita? Não…
Se quereis se onipotentes, podei somente o justo e lícito, e não queirais poder o ilícito e injusto. Se assim o fizerdes sereis onipotentes como Deus, e se não, serão os vossos poderes como os do diabo, que pode e faz muitas coisas que Deus não pode".
Deus, ainda que quisesse fazer tudo quanto pode, não pode. A razão que a nós basta, deixadas outras, é muito clara, porque como Deus é onipotente, por mais que faça, sempre lhe fica poder para fazer mais. E se pudesse fazer quanto pode, esgotar-se-ia a onipotência, e não sendo onipotente deixaria de ser Deus.
O que perde não só o governo, mas as consciências e almas dos príncipes, é cuidarem que podem tudo, porque podem tudo. Se isso lho dizem, é lisonja, e se o crêem, é engano. O rei pode tudo o que é justo; para o que for injusto nenhum poder tem. Esta é a verdadeira e maior lisonja que se pode dizer aos reis, porque é fazê-los poderosos como Deus. Deus é onipotente: e poderá Deus fazer uma injustiça? De nenhum modo. Pois assim devem entender os reis que são poderosos."
Por esses poucos exemplos, dá para perceber como Padre Antônio Vieira possui um texto profundo, como suas conjecturas são inteligentíssimas e, mesmo descontando os séculos que nos separam, como suas análises permanecem atuais.
Aconselho a leitura de Vieira como um eficaz remédio para curar a atual geração da superficialidade a que foi condenada.
Soli Deo Gloria.
texto de Ricardo Gondim s/ aquele que Fernando Pessoa chamou de "imperador da língua portuguesa": Padre Antônio Vieira. Ele nasceu há 400 anos e é o ilustre e ilustradíssimo aniversariante de hj.
6.2.08
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