20.2.08

Jesus foi embora

E agora? Sejamos sinceros, dois mil anos depois, ainda não nos conformamos bem com essa fatalidade antiguíssima e angustiante.

Nossa família toda sofreu um baque enorme depois que minha querida mãe foi acometida por uma doença geriátrica denominada demência de Pick. A demência não rouba do idoso suas memórias como é no caso do mal de Alzheimer, mas rouba aos poucos sua personalidade e faculdades, como a de comunicação. Boa parte do tempo mamãe está mentalmente ausente.

Boa parceira de bate papos e conversadeira (no bom sentido da palavra), ela hoje somente nos presenteia com repetições; e nos raros momentos de lucidez solta uma frase de impacto. Por exemplo, enquanto juntos aguávamos a horta (que eu tentava ressuscitar) ela me agraciou com um, “pensei que não fosse ver ele mais”! Essa foi uma das duas únicas frases que ela falou em duas semanas, na visita que a fiz ano passado.

Semana passada, segundo meu pai, ela estava muito agitada, inquieta e gritando muito. Aí ele perguntou o que estava sentindo e ela de pronto respondeu: "EU ESTOU SENTINDO É UMA FALTA DE MIM MESMO!"

Mamãe tem uma veia melancólica formidável. Embora amadora nas artes seu atrevimento possibilitou-lhe pintar várias telas (algumas das quais arrebatei para mim nessa última ida ao Brasil) e escrever três livros. "Lembranças" é o título de um deles. Memórias, segunda ela, são as pesssoas famosas e importantes que escrevem, "como não sou importante nem famosa escrevo minhas lembranças". Apesar de toda a seu diligência literária, “Lembranças” não nos ajuda em nada no esforço de achar em que canto deste universo nossa amiga de conversa se esconde.

Enquanto o festival de filmes de Berlim chega ao final, e esperançosos de que “Tropa de Elite” leve o Urso de ouro, lembramo-nos saudosos que exatamente 10 anos atrás o “Central do Brasil” enchia nossa alma brasileira com o gostinho formidável da vitória – diga-se de passagem, que meses mais tarde seria substituído pelo sabor amargo da derrota, na copa do mundo da França...

Será que Jesus voltará? Ceticamente perguntava “Central do Brasil” através das lentes de Walter Salles. Josué e seus irmãos, Moisés e Isaias aguardavam a volta de seu pai Jesus que sumira deixando-lhes somente uma carta.

Semelhantemente ao examinarmos a história da igreja podemos não encontrar Jesus, ainda que como os garotos de "Central do Brasil" tenhamos sua carta de despedida nas mãos. Aliás, “Perder Jesus de vista no livro de Atos” ainda bem no início da história eclesiástica, não é uma tarefa muito difícil.

Aceitando o desafio proposto por Paulo Purim em seu blog, passei a reler meticulosamente o segundo livro de Lucas. Tive que dar o braço a torcer e ver que ali, o jovem de Nazaré, é abruptamente substituído pelos dois ícones mais relevantes do cristianismo, o pescador e o fazedor de tendas.

O médico, autor do livro, só nos presenteia com duas “míseras” inéditas frases de Jesus. Além disso, não há mais nada. As duas frases, as quais não aparecerem em nenhum dos evangelhos, são tudo que Atos nos oferecem dos ensinos de Jesus: nenhuma parábola, nenhum mandamento, nenhum relato, nem relato de relatos passados. Nem memórias e nem lembranças.

Ele sumiu. E, pior, seus rastros também.

Roger Brand, no Fraternus.

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