16.2.08

Todos irmãos

Todos são estrangeiros em sua própria pátria. Ninguém se sente realizado. As experiências existenciais são incompletas. As fontes d’água não dessedentam; nenhuma festa é perfeita; nenhuma aventura satisfaz. Viver não basta. Não adianta querer sonhar a mesma coisa duas noites seguidas. O sexo de ontem não será igual ao de amanhã. A onda do mar nunca retorna como era; o rio morre a cada instante.

Todos têm dúvidas. Só os imbecis vivem com certezas. Os psicopatas não conhecem culpa. O convívio dos que se amam é complicado. Intolerâncias recrudescem quando se defendem absolutos; invejas se escondem nas convicções; frustrações se sublimam nas militâncias; covardias se chamam de prudência.

Todos são frágeis. Violências camuflam fraquezas; os hostis são patéticos; os estúpidos, ordinários; os poderosos, pequenos. Os leões não comandam as selvas; as lebres não superam as tartarugas; os tubarões não tiranizam os oceanos. No coração dos imperadores habitam crianças indefesas; mesmo o perverso torturador tem carências; os cáusticos religiosos se enternecem com belezas.

Todos são medrosos. A busca insana por segurança denuncia precariedade; o medo do amanhã gera ansiedades; a contingência existencial pesa como solidão. Perdeu-se o aconchego do útero e não há como fugir da orfandade universal. Ecoa pelas galáxias um grito que implora por um Pai. Ouve-se a pergunta: “cadê o colo da minha mãe divina?”. A fase oral da humanidade não se acabou e todos buscam aquele seio que lhes nutriu a vida.

Todos são frustrados. A história não se desenrolou como previsto. A miséria esbofeteia os idealistas; nenhuma resposta conseguiu explicar o pranto desesperado de milhões de crianças; as hecatombes são perversas demais para que se acolham respostas simplistas. Os holocaustos, a morte parcimoniosa dos pobres, a injustiça capitalista, os sistemas políticos ensimesmados, continuam desafiando teodicéias, humanismos, ideologias e existencialismos.

Não se conseguiu solução concreta para os desmandos da história. As espadas nunca se transformaram em arados. Ninguém enxugou as lágrimas das mães que lamentaram seus filhos em covas rasas. A Nova Cidade ainda não desceu do céu.

Todos são angustiados. A morte espreita nos lares feito uma bruxa de mau agouro. A beleza das cores, o prazer do vinho, a alegria do amor, têm data marcada para terminar. A vida é efêmera. Ninguém tolera conviver com uma guilhotina prestes a descer. Tudo é imprevisível.

Passarão o ar fresco da montanha, o canto da cigarra, o riso espontâneo do palhaço, o grito de gol nos estádios. É preciso aprender a dizer adeus. O tempo, inclemente, cobre a vida de fuligem. O poema mais comovente um dia não será recitado; a orquestra, diáfana como um véu de noiva, se esgarçará. A canção que ressuscita saudade tem o mesmo destino do perfume mais caro, lavado com sabão.

Todos somos irmãos. Ninguém é melhor do que ninguém. Todos sofrem e todos riem; iguais no nascimento e na morte; criados com uma lacuna infinita, que só o próprio Deus pode completar.

Soli Deo Gloria.

Ricardo Gondim

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