“Sou antes um leitor do que um escritor”, afirmou certa vez Jorge Luis Borges. De fato, é assim que costumamos imaginar o velho bruxo argentino – como um grande leitor. Um enciclopedista, o diretor da Biblioteca Nacional, passando tardes e mais tardes debruçado sobre manuscritos das localidades mais ermas da Terra – do oriente, em especial –, compilando citações, montando quebra-cabeças, transformando, enfim, uma estante inteira em um conto de meia-dúzia de páginas. Uma rotina bem compatível com a vida pessoal de Borges, solteirão durante grande parte da vida, filhinho da mamãe (com quem viveu e de quem depende emocionalmente até a morte dela, aos 99 anos), pouco afeito a celebrações literárias (passado o entusiasmo da juventude, quando freqüentava com Bioy Casares e Silvia Ocampo as rodas dos cafés de Buenos Aires) e, para completar, cego durante um tempo considerável de sua existência.
Faz todo sentido o Borges que resulta dessa reunião de fatos. É o Borges que prevalece, está claro. Mas será que ele era apenas isso – o homem que foi antes um leitor do que um escritor? Por um lado podemos pensar em sua obra como uma espécie de história da leitura. Em toda a sua erudição, ele se aproveitou de infinitas tradições literárias, sobretudo a inglesa da virada do século 19 para o 20 (Shaw, Chesterton, Wells, Stevenson, Maugham), e também a filosofia alemã de Schopenhauer, o romance espanhol e fundador de Cervantes e universos bem menos “sofisticados”, como as tradições folclóricas e gaúchas do interior da Argentina (embora sempre tenha tentado se desfiliar das raízes portenhas, a verdade é que poucos autores foram tão argentinos quanto ele). Com seus exercícios narrativos (tidos como pós-modernos), promoveu jogos de espelhos e enigmas que apontavam, quase sempre, para a literatura em estado puro. Impossível, portanto, continuar a enxergar a história da leitura da mesma maneira depois de tê-lo lido.
Ainda assim, é possível encontrar mais do que isso em Borges, sobretudo com o relançamento recente de quatro livros seus (a clássica coletânea de contos Ficções, os ensaios de Outras inquisições, os poemas de Primeira poesia e os relatos inclassificáveis de O livro dos seres imaginários). Neles fica claro o quanto Borges era, sim, um escritor. Tanto quanto leitor? Difícil quantificar. No mínimo, tanto quanto. Ficções, sozinho, substituiria com eficiência um verbete sobre a história da escrita em qualquer enciclopédia. Porque enclausuradas no clichê da erudição e dos truques lingüísticos e estruturais, as histórias de Borges perdem, na mão dos críticos e dos acadêmicos, muito de seu aspecto lúdico, de seu poder de entretenimento. Emanam e espelham, nesses estudos, a sisudez dos próprios críticos. Uma ou outra posição política polêmica ou a amargura que o acometeu no fim da vida à parte, Borges pouco tinha de sisudo. Com a pena na mão, ao menos, era o contrário disso. Literatura para ele mais se assemelhava a uma brincadeira – no bom sentido. E se ele (um “mistificador e satírico”, na visão de Otto Maria Carpeaux) tirava tanto prazer disso, por que teimamos em colocá-lo em um pedestal de austeridade?
Borges instala a discussão sobre escrita logo no primeiro relato de Ficções, “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, sobre uma região que deixou de existir após ter desaparecido das páginas de uma enciclopédia. Nada que não possua um registro escrito confiável pode ser considerado existente, parece querer dizer. Tlön e Uqbar nada mais são do que a imaginação de um escritor, um local onde “epopéias e lendas jamais se referem à realidade”. Em Tlön, os metafísicos “sabem que um sistema não é outra coisa além da subordinação de todos os aspectos do universo a qualquer um deles”. A literatura como princípio que rege o mundo. Borges desenvolve Tlön definindo-a a partir dos conceitos do autor, enquanto Tlön é, ela própria, regida por princípios assim – no caso, do leitor do livro Ficções ou de Borges ou de um morador ou de qualquer um.
Afinal, escrever ficção nada mais é do que dominar um universo, muito mais do que pegar uma pena e redigir uma história. É possível, como bem sabemos, escrever lendo. A trama do livro é mutável, adaptável à bagagem moral, cultural e familiar que possui aquele que o desafia. Tlön será “um labirinto destinado a ser decifrado pelos homens”. Decifrado não através da leitura, mas da escrita. Como escreve Harold Bloom, não é possível revelar com exatidão do que se trata essa questão, tão escorregadia e tão distante de uma explicação definitiva Esse dilema, diz Bloom, “só mesmo todo o universo literário fantástico há de explicar”. Ricardo Piglia escreve maravilhosamente sobre “Uqbar, Tlön e Orbis Tertius” em O último leitor, defendendo que “ao mesmo tempo, em Borges o ato de ler articula o imaginário e o real”. Verdade. Apenas falta dizer que o ato de escrever também articula. Se este conto ganha ensejo através da ausência, essas lacunas são preenchidas por quem as imagina – isso é ficcionalizar, mesmo que penetrando as lacunas de um rótulo de xampu. “Então todos são escritores?”, pode-se perguntar. Sim. Piglia afirma que “um leitor também é aquele que lê mal, distorce, percebe confusamente”. O escritor também. O difícil é ser um bom escritor...
“Pierre Menard, o autor de Quixote” representa a literatura no que ela tem de mais utópico. O Menard do título é um escritor que sonha em escrever D. Quixote. Não reescrever, tampouco transcrever. Escrevê-lo novamente, como se fosse Miguel de Cervantes, como se tivesse vivido tudo o que Cervantes viveu, e naquela época (“ser no século XX um romancista popular do século XVII pareceu-lhe uma diminuição”). A escrita, aqui, é a válvula de escape de uma vida medíocre, o desejo de viver a literatura. Não basta escrever a obra-prima, o que em si já seria o sonho de qualquer mortal; é preciso ser Cervantes, em todas as suas aventuras. Menard, logicamente, confronta-se com a dificuldade de situar no tempo presente uma obra do passado (além de se ver limitado pelo próprio talento). Morre sem concluir o trabalho de sua vida. Nesse sentido, “Funes, o memorioso” é um conto oposto. A memória de Funes está tão impregnada de conhecimento que não consegue dormir; o saber é a sua maldição. A incrível capacidade o impede de viver.
A metalinguagem também ganha espaço nas páginas de Ficções – justificando a alcunha – reducionista, vale repetir – de pós-moderno que acompanha o argentino. Em “O jardim de veredas que se bifurcam”, praticamente um relato policial, há um conto dentro do conto (a busca por um labirinto) e ainda um romance chinês dentro desse segundo conto. Essas escrituras que se seguem direcionam e “escrevem” o protagonista da primeira narrativa, atravessando essas diversas camadas e dando sentido à sua trajetória. Um exemplo mais emblemático de metalinguagem é “As ruínas circulares”: um homem desenvolve, nos seus sonhos, uma criatura que cria vida própria e escapa de seu controle para, no final do texto, esse sonhador descobrir “que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando”, como se todos fôssemos criações literárias sucessivas. É muito difícil, por sinal, não pensar que, nesse momento, nossas vidas não estão sendo escritas, pensadas e sonhadas por Jorge Luis Borges, sentado, sorridente e galhofeiro, em algum lugar.
Jonas Lopes, no ótimo Gymnopedies
Faz todo sentido o Borges que resulta dessa reunião de fatos. É o Borges que prevalece, está claro. Mas será que ele era apenas isso – o homem que foi antes um leitor do que um escritor? Por um lado podemos pensar em sua obra como uma espécie de história da leitura. Em toda a sua erudição, ele se aproveitou de infinitas tradições literárias, sobretudo a inglesa da virada do século 19 para o 20 (Shaw, Chesterton, Wells, Stevenson, Maugham), e também a filosofia alemã de Schopenhauer, o romance espanhol e fundador de Cervantes e universos bem menos “sofisticados”, como as tradições folclóricas e gaúchas do interior da Argentina (embora sempre tenha tentado se desfiliar das raízes portenhas, a verdade é que poucos autores foram tão argentinos quanto ele). Com seus exercícios narrativos (tidos como pós-modernos), promoveu jogos de espelhos e enigmas que apontavam, quase sempre, para a literatura em estado puro. Impossível, portanto, continuar a enxergar a história da leitura da mesma maneira depois de tê-lo lido.
Ainda assim, é possível encontrar mais do que isso em Borges, sobretudo com o relançamento recente de quatro livros seus (a clássica coletânea de contos Ficções, os ensaios de Outras inquisições, os poemas de Primeira poesia e os relatos inclassificáveis de O livro dos seres imaginários). Neles fica claro o quanto Borges era, sim, um escritor. Tanto quanto leitor? Difícil quantificar. No mínimo, tanto quanto. Ficções, sozinho, substituiria com eficiência um verbete sobre a história da escrita em qualquer enciclopédia. Porque enclausuradas no clichê da erudição e dos truques lingüísticos e estruturais, as histórias de Borges perdem, na mão dos críticos e dos acadêmicos, muito de seu aspecto lúdico, de seu poder de entretenimento. Emanam e espelham, nesses estudos, a sisudez dos próprios críticos. Uma ou outra posição política polêmica ou a amargura que o acometeu no fim da vida à parte, Borges pouco tinha de sisudo. Com a pena na mão, ao menos, era o contrário disso. Literatura para ele mais se assemelhava a uma brincadeira – no bom sentido. E se ele (um “mistificador e satírico”, na visão de Otto Maria Carpeaux) tirava tanto prazer disso, por que teimamos em colocá-lo em um pedestal de austeridade?
Borges instala a discussão sobre escrita logo no primeiro relato de Ficções, “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, sobre uma região que deixou de existir após ter desaparecido das páginas de uma enciclopédia. Nada que não possua um registro escrito confiável pode ser considerado existente, parece querer dizer. Tlön e Uqbar nada mais são do que a imaginação de um escritor, um local onde “epopéias e lendas jamais se referem à realidade”. Em Tlön, os metafísicos “sabem que um sistema não é outra coisa além da subordinação de todos os aspectos do universo a qualquer um deles”. A literatura como princípio que rege o mundo. Borges desenvolve Tlön definindo-a a partir dos conceitos do autor, enquanto Tlön é, ela própria, regida por princípios assim – no caso, do leitor do livro Ficções ou de Borges ou de um morador ou de qualquer um.
Afinal, escrever ficção nada mais é do que dominar um universo, muito mais do que pegar uma pena e redigir uma história. É possível, como bem sabemos, escrever lendo. A trama do livro é mutável, adaptável à bagagem moral, cultural e familiar que possui aquele que o desafia. Tlön será “um labirinto destinado a ser decifrado pelos homens”. Decifrado não através da leitura, mas da escrita. Como escreve Harold Bloom, não é possível revelar com exatidão do que se trata essa questão, tão escorregadia e tão distante de uma explicação definitiva Esse dilema, diz Bloom, “só mesmo todo o universo literário fantástico há de explicar”. Ricardo Piglia escreve maravilhosamente sobre “Uqbar, Tlön e Orbis Tertius” em O último leitor, defendendo que “ao mesmo tempo, em Borges o ato de ler articula o imaginário e o real”. Verdade. Apenas falta dizer que o ato de escrever também articula. Se este conto ganha ensejo através da ausência, essas lacunas são preenchidas por quem as imagina – isso é ficcionalizar, mesmo que penetrando as lacunas de um rótulo de xampu. “Então todos são escritores?”, pode-se perguntar. Sim. Piglia afirma que “um leitor também é aquele que lê mal, distorce, percebe confusamente”. O escritor também. O difícil é ser um bom escritor...
“Pierre Menard, o autor de Quixote” representa a literatura no que ela tem de mais utópico. O Menard do título é um escritor que sonha em escrever D. Quixote. Não reescrever, tampouco transcrever. Escrevê-lo novamente, como se fosse Miguel de Cervantes, como se tivesse vivido tudo o que Cervantes viveu, e naquela época (“ser no século XX um romancista popular do século XVII pareceu-lhe uma diminuição”). A escrita, aqui, é a válvula de escape de uma vida medíocre, o desejo de viver a literatura. Não basta escrever a obra-prima, o que em si já seria o sonho de qualquer mortal; é preciso ser Cervantes, em todas as suas aventuras. Menard, logicamente, confronta-se com a dificuldade de situar no tempo presente uma obra do passado (além de se ver limitado pelo próprio talento). Morre sem concluir o trabalho de sua vida. Nesse sentido, “Funes, o memorioso” é um conto oposto. A memória de Funes está tão impregnada de conhecimento que não consegue dormir; o saber é a sua maldição. A incrível capacidade o impede de viver.
A metalinguagem também ganha espaço nas páginas de Ficções – justificando a alcunha – reducionista, vale repetir – de pós-moderno que acompanha o argentino. Em “O jardim de veredas que se bifurcam”, praticamente um relato policial, há um conto dentro do conto (a busca por um labirinto) e ainda um romance chinês dentro desse segundo conto. Essas escrituras que se seguem direcionam e “escrevem” o protagonista da primeira narrativa, atravessando essas diversas camadas e dando sentido à sua trajetória. Um exemplo mais emblemático de metalinguagem é “As ruínas circulares”: um homem desenvolve, nos seus sonhos, uma criatura que cria vida própria e escapa de seu controle para, no final do texto, esse sonhador descobrir “que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando”, como se todos fôssemos criações literárias sucessivas. É muito difícil, por sinal, não pensar que, nesse momento, nossas vidas não estão sendo escritas, pensadas e sonhadas por Jorge Luis Borges, sentado, sorridente e galhofeiro, em algum lugar.
Jonas Lopes, no ótimo Gymnopedies
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