15.3.08

Jesus foi um grande homem de teatro

Considerado um dos últimos trovadores, o Prêmio Nobel italiano demonstra aos 82 anos que não perdeu a capacidade de provocar, de fustigar os poderes políticos ou eclesiásticos e de criar através da palavra e da pintura.

Em seu site na Web (www.dariofo.it) há, antes de mais nada, um texto:"Figura destacada do teatro político que, na tradição dos trovadores medievais, fustigou o poder e restaurou a dignidade dos humildes". Dario Fo, nascido em 1926 em um pequeno povoado no norte da Itália, junto ao lago Maior, só quer ser visto assim. É preciso entrar em seu blog para saber outras coisas.

Prêmio Nobel em 1997, arquiteto, pintor prolífico, ativista político (nunca teve carteirinha), mobilizado na República de Salò, candidato à prefeitura de Milão por duas vezes, doutor pela Sorbonne, historiador da arte e, é claro, autor de teatro traduzido para vários idiomas e representado em todo o mundo. Suas obras foram em grande parte escritas junto com sua mulher desde 1951, a até agora senadora Franca Rame, atriz pertencente a uma saga de atores cujas origens remontam a 1600 e cujas atitudes políticas lhe custaram um seqüestro, com violação incluída, por parte de fascistas em 1973.

Os dois anciãos (ele com 82 anos, ela com 78) levam uma vida, em comum e em separado, marcada pela atividade frenética. A casa dos dois transmite isso. É um entra-e-sai de gente, tudo é alvoroço e trabalho, fotocópias, fax, palestras, gestões, telefonemas... Franca entra e sai do escritório de Fo, ao qual pergunta ou informa alguma coisa, e o mestre salta de um tema para outro com o virtuosismo de um comediante de variedades.

Algumas frases servem para responder a Franca, outras para falar com as moças de sua equipe, e ao mesmo tempo responde à entrevista que, passado algum tempo, interrompe bruscamente para sair em velocidade de sua casa para ajudar um amigo. Franca o substitui e dá informações, incluindo a de que são bisavós.

No salão também há fotos, cartazes, quadros e os vícios do mestre. Suas peças especiais, sobretudo esculturas religiosas: uma Pietà, uma Virgem com o menino, um grande Cristo crucificado, um belíssimo São Sebastião (ele acredita que é igual ao de Mantegna), peças romanas...Fo, que quase todos os anos visita a Espanha, atuará em abril em Córdoba, em agosto na Expo de Zaragoza com Juan Echanove e, possivelmente, na primavera em Madri (está negociando com Mario Gas).

Acaba de publicar na Itália "Gesù Amava le Donne" (editora Rizzoli) [Jesus amava as mulheres], continua editando estudos, a modo de aula-espetáculo sobre grandes pintores, e esta semana sai na Espanha "El mundo según Fo - Conversaciones con Giuseppina Manin" (editora Paidós), com tradução de sua biógrafa, Carla Matteini.

El País - A democracia formal atual em muitos países ocidentais, com sistemas de dois grandes partidos próximos entre si nas políticas reais, é um avanço para algo ou uma mera estabilização do poder?

Dario Fo - É a estabilização do poder e do sistema capitalista. O poder faz isso para não perder nunca. Na América há uma variante importante: os dois partidos têm regras que podem pôr em crise até o presidente. Aqui, por sua vez, tudo é ocultado, acaba se pactuando.

EP - O senhor continua pensando que as revoluções sempre começam bem e acabam mal?

Fo - Basta olhar para a história. Penso no cristianismo, seus significados, seus objetivos... e olho para o papa. O que esse senhor tem a ver com o pensamento de Cristo? Se ele não faz nada! Nem ele nem seus cardeais; o clero é uma grande massa de poder, e Jesus só falou do poder do amor. Basta ver os bispos espanhóis pedindo o voto para a direita! Ainda por cima são politicamente reacionários. Exatamente o contrário de Cristo.

EP - Por que acredita que isso ocorra?

Fo - Foi devido a um fato que não se recorda. No século 3º, Constantino viu que o cristianismo adquiria importância. Como a religião pagã não resolvia os problemas, ofereceu ao cristianismo ser a religião do império e seus bispos ganharam o direito de não pagar impostos nem taxas de sucessão nem tributos, coisas que existiam na jurisdição romana. Tinham o poder do espírito e desde então o poder material, sem esquecer que ganharam propriedades em toda a Europa graças a um documento supostamente escrito por Constantino em seu leito de morte, que depois se demonstrou que era falso.

EP - Sendo o senhor um ateu convicto e confesso, não deixa de ser curiosa essa paixão, transformada em autêntica investigação, sobre Jesus Cristo, os Evangelhos, São Francisco, a Igreja?

Fo - Jesus foi um grande homem de teatro, de verbo incrível e grande sentido da organização das histórias que contava; planejava espacialmente seus discursos utilizando os declives do terreno, de maneira que falava sem forçar muito a voz para 5 mil ou 10 mil pessoas. Que sentido da cena!

EP - Com as técnicas usadas pelos gregos para seus teatros?

Fo - Exatamente. Ele enfrentava a necessidade de ter de improvisar, nem todos os que iam estavam de acordo, havia provocadores, e ele jamais os expulsava, tentava integrá-los. Parece que o fazia com circunstâncias em que não faltavam elementos cômicos e situações grotescas, tinha essa grande habilidade, como São Francisco, fazia discursos limados e polidos.

EP - Isso se depreende da leitura dos Evangelhos?

Fo - Nos Apócrifos se vê claramente que buscava diálogos, criava atmosferas, réplicas com seus discípulos... se intuem muitas coisas se forem lidos com atenção, e se descobre que aquilo só poderia funcionar se fosse encenado com atores e com situações coletivas e corais. Isso é teatro!

EP - Não havia improvisação?

Fo - Nada era deixado ao acaso. A mesma anedota era contada em lugares diferentes, como demonstram vários testemunhos, era um espetáculo em turnê; passou três anos em turnê em uma área geográfica enorme. Em teatro não se improvisa, é preciso respeitar algumas regras, e ele o fazia.

fonte: El País [via UOL]

tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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