31.3.08

Lambanças da memória

Ontem fui entrevistado pelo SportTV sobre jingles e propaganda nas décadas de 50 e 60, a propósito do aniversário de 50 anos da nossa primeira Copa do Mundo.

Quando o Brasil ganhou a sua primeira copa eu era garoto, tinha dez anos, mas me lembro perfeitamente da imensa euforia que foi aquela conquista. Morava em São Paulo e as emissoras de rádio colocavam alto-falantes nas praças para que o povo pudesse acompanhar a transmissão das partidas.

Claro que a gente podia ouvir o jogo no rádio de casa, mas qual seria a graça? O gostoso era estar na rua, junto com a torcida, vibrando em comunhão. A Rádio Bandeirantes, se não me engano, inovou. Colocou seus megafones em balões cativos e sob seu cone sonoro ficávamos nós nas praças, brasileiros, irmanados pela esperança. Se me lembro bem, enchi o saco de meu pai e consegui que ele me levasse à Praça da Sé para torcer pelo Brasil.

A sensação que eu guardo até hoje é que éramos uma única família naquela multidão que enchia a Sé, a João Mendes e se esparramava pelas ruas em volta. Tinha mulheres, crianças, tinha de tudo que era idade, nacionalidade, cor. A gente falava com todo mundo, trocava idéias com qualquer um e comemorava com quem estivesse mais próximo cada gol que o Brasil marcava na inacreditavelmente distante Suécia.

De tão longe vinha o som das rádios que os locutores da época, famosos pela capacidade de falar muito depressa, tinham que escandir as palavras para que em meio à estática e ondulações fosse possível distinguir o que estava sendo dito. Parecia que a voz vinha do outro mundo. E vinha mesmo.

Um mundo de gente loura, rica, que ainda tinha rei e rainha. Mas gente a quem nós, brasileiros, morenos, pequenos, pobres e plebeus "mostramos o futebol como é que era" segundo a letra do jingle que se tornou o hino oficial da vitória.

Aliás, a produção musical das primeiras copas era pra lá de sofrível, primária mesmo, rimando anil com Brasil e até mesmo com raça varonil. Mas não apareceu nenhum crítico musical para falar mal. Em todas as esquinas, em todos os bares, em qualquer calçada vozes nem sempre perfeitamente afinadas cantavam a aventura de um povo que ganhou a Copa do Mundo "sambando com a bola no pé".

E dá-lhe animação na hora do refrão: "campeão do mundo... Brasil!". Engraçado, me lembro agora que apesar da multidão aglomerada, não havia a profusão de ambulantes que marcam presença em qualquer evento atual. Não consigo achar na memória um único camelô fazendo churrasquinho, vendendo cerveja, oferecendo bala. No máximo tinha vendedor de bandeira brasileira.

Mas não sei se por falta de dinheiro ou até mesmo por costume, pouca gente comprava o "lindo pendão da esperança". Eu infernizei tanto o pobre do seu José Vieira que ele acabou me dando de presente uma bandeira. Que durou toda a copa, todas as comemorações e ainda foi entronizada no meu quarto, onde permaneceu até eu ir embora de casa.

Era um tempo em que um pedaço de pano estampado custava algum dinheiro. Minha família tinha dinheiro apenas para andar de bonde e um Vulcabrás tinha que durar o ano escolar inteiro, assim como os cadernos, os livros e a caixa de lápis de cor. Eram duas camisas e duas calças, dois pares de meia por ano. E olhe lá, como se dizia.

Por isso o caldo de cana e o pastel de carne da Rua Formosa, ao lado da Praça do Correio, de onde saíam os bondes para a Lapa, tinha um sabor muito especial. Eram raros. Fazendo atualização monetária, um lanche dividido entre meu pai e eu deveria custar uns R$ 10,00. E era muito.

A grande extravagância acontecia no dia de ir ao Cine Ipiranga ver Cantinflas, pois na saída íamos à Salada Paulista, quase na esquina da São João, tomar Guaraná Caçula e comer um cachorro-quente. E eu me sentia o máximo.

Aliás, para quem não é de São Paulo, Salada Paulista não significa nada. Para os de minha cidade e meu tempo, evoca uma época inteira. Salada Paulista era uma imensa lanchonete onde se comia de pé, ao longo de um balcão enorme, de mármore. Os atendentes, do lado de dentro do balcão, escreviam a lápis no mármore a despesa de cada freguês. O cardápio era pequeno: cachorro-quente, salada de batata, misto-quente.

Tenho a mais absoluta certeza de que eram iguarias de altíssima qualidade. A saudade é o melhor tempero que qualquer comida pode ter. Bem, você deve estar se perguntando onde eu quero chegar com esta crônica. Eu respondo: a lugar nenhum. É que no fim da entrevista, falando de velhos tempos e de velhas pessoas, o repórter sem saber o que mais perguntar, quis saber se eu tivesse oportunidade de voltar no tempo, o que eu faria que não fiz. Eu respondi que se pudesse voltar no tempo teria dito ao meu pai o quanto o amava.

Lula Vieira, no Propaganda & Marketing.

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