Os poetas conhecem como ninguém o processo pelo qual as palavras vão se gastando, sujando e perdendo o poder denotativo que tinham. Exemplo típico, em nossos tempos, é a palavra “terrorismo”. A partir dos acontecimentos de 11/09/2001 – atos indubitavelmente terroristas no sentido clássico –, a manipulação do vocábulo pela administração Bush e pelos seus aliados ao redor do mundo passou a convertê-la numa espécie de epíteto a que se recorre para justificar qualquer coisa, uma sorte de xingamento conveniente e inquestionável. Essa é a lógica que preside alguns dos argumentos acerca do recente imbróglio entre Colômbia e Equador, que deixou nítida, mais uma vez, a monumental ignorância brasileira sobre seus vizinhos, até mesmo de parte de gente bem instruída.
Para começar, o que os gringos chamam full disclosure (abrir o jogo): tenho razões muito pessoais para detestar as Farc. Já me atingiram de perto, seqüestrando gente próxima a mim – gente de esquerda, inclusive. Quem quiser xingá-los de terroristas ou narcobandidos, que fique à vontade. Mas não acredite que, com isso, esteja aproximando-se um centímetro de compreender o conflito colombiano. O lamentável editorial d' O Globo deste domingo, por exemplo, é uma descarada justificativa do crime internacional perpetrado pelo governo de Uribe -- distorce os fatos ao ponto de dizer que os presidentes Chávez e Correa ficaram isolados! O editorial ainda desce a lenha na atuação do governo brasileiro que, do ponto de vista diplomático, me pareceu impecável. Em coluna na Folha de São Paulo, Nelsinho Motta – a quem conheço, admiro e quero bem – abusa dos xingamentos às Farc e dá um espetáculo de desconhecimento do tema, ao perguntar-se as Farc não pretenderiam tomar o poder e instalar um governo “bolivariano”. Como alguém pode escrever uma coluna sobre o tema no maior jornal brasileiro e não saber que as Farc jamais reinvindicaram qualquer referência ao “bolivarianismo”? É preocupante que o autor do artigo não saiba que a referência nem sequer teria sentido na Colômbia. Sugere que ele esteja confundindo a Colômbia com a Venezuela, dois países que têm muito pouco em comum além da fronteira. Sei que é chato usar argumentos assim, mas produz cansaço ver, pontificando sobre o conflito colombiano e distribuindo epítetos, gente que não saberia localizar Antioquia ou o Vale do Cauca num mapa.
As Farc eram uma guerrilha onde se misturavam inspirações guevariana e maoísta com um elemento profundamente colombiano, a saber: desde muito tempo --- desde o fracasso do pacto de 1854 que uniu liberais e conservadores contra o General Melo, ou, diriam outros mais modestos, desde o período conhecido como “La violencia”, entre o fim da década de 1940 e os anos 1950 –, a militarização da sociedade colombiana põe em cena um horrendo teatro da vingança no qual bandos armados, oficiais ou não, permitem que filhos possam ir à forra pelos assassinatos de seus pais. Imaginem a espiral viciosa desse gigantesco horror de órfãos e viúvas. Nas últimas décadas, as Farc passaram a adotar várias práticas do banditismo comum, como a extorsão e o seqüestro não motivado politicamente (claro que um seqüestro como o de Ingrid Betancourt tem motivação política; refiro-me a outros, para ganho econômico).
O tráfico de drogas está envolvido? É evidente que sim. Qual o problema com a definição “narcoguerrilha”? Ela finge ignorar o fato mais básico, que o dinheiro da droga financia todos os lados do conflito colombiano, incluído aí o estatal. Isola-se um dos atores desse conflito para receber o prefixo “narco”, como se o tráfico estivesse ausente em outras comarcas. Realiza-se, portanto, uma operação de desonestidade intelectual. É pior ainda o rótulo de “terroristas”, já que o que caracterizou tradicionalmente as Farc nunca foi o ato terrorista no sentido clássico, como a bomba em lugares públicos. Não são incapazes desses atos, mas o que os marca é a trajetória que vai do combate guerrilheiro à paulatina incorporação de métodos do banditismo. Uma boa parte de seus membros não são guevaristas nem muito menos terroristas, mas camponeses que se viram compelidos a se incorporar a alguma força armada no contexto de uma espiral de violência já ancestral.
Boa parte da população camponesa e agricultora colombiana está acostumada a viver com até três extorsões: das Farc, dos paramilitares (AUC) e do próprio estado, este último “representado” por bandidos que utilizam para proveito próprio a guerra de extorsões entre os vários bandos armados. O que consegue Uribe, nos últimos anos, é simplificar esse terror: de um imposto ternário, passamos a um binário. A extorsão paramilitar de direita aninha-se ao interior da operação estatal. É impossível discutir a situação da Colômbia sem levar em conta a reinserção dos paramilitares na legalidade, com muitos deles incorporados ao estado (reinsertarse é o verbo que se usa na Colômbia para definir o processo de abandono das armas e passagem à legalidade). A recente popularidade de Uribe se apóia na diminuição real dos índices de violência, que tem um conjunto de causas: a legalização dos paramilitares (que passam assim a contar com os recursos do estado e já não recorrem tanto ao assassinato), a reinserção do M-19, o trabalho comunitário inovador de prefeituras como a de Bogotá e, inclusive, opções táticas recentes das próprias Farc, que têm perfeita consciência do seu isolamento. É evidente que a "linha dura" de Uribe tenta capitalizar politicamente sobre uma série de resultados sobre os quais ela tem responsabilidade só parcial.
A grande cartada que tem Uribe é a utilização do espectro do “terrorismo” para demonizar um único ator do conflito -- quando o rótulo é igualmente (in)aplicável a todos os outros. Se há algo que, em definitivo, não interessa ao governo colombiano é a reinserção pacífica e ordenada das Farc. Se tudo o que ele conseguiu em termos de popularidade foi na carona da redefinição das Farc à luz da retórica do terrorismo da era Bush, por que abrir mão do manipulável fantasma? Se pouca gente fora da Colômbia sabe que os níveis de violência podem ter baixado, mas que as taxas de mortalidade por assassinato entre os “reinseridos” de esquerda continua altíssima? Visite um camponês cundiboyacense e observe no seu semblante o terror produzido pela menção de duas curtas palavrinhas: los paras. Na seqüência, faça um levantamento do número de candidatos a cargos eletivos assassinados pelos paramilitares ou por agentes do próprio estado em comparação com o número de políticos mortos pelas Farc. Depois volte aqui e dê uma gargalhada na cara do direitista tupiniquim que quer entender o conflito colombiano como uma oposição entre o “narcoterrorismo” e o “estado democrático de direito”.
É possível que tenha havido contatos entre as Farc e os governos da Venezuela e do Equador mais além das normais conversas em torno ao tema da paz? Sim. É possível que tais contatos tenham envolvido grana? Sim, é possível. Embora eu ache pouco provável, estaria disposto a considerar este novo dado, caso apareçam indícios ou provas. Não, os conteúdos de um laptop ao qual só Uribe teve acesso não valem como prova de nada. Até agora, o que temos é esse mapa político nos quais os interesses me parecem bem nítidos.
É por tudo isso que é inaceitável que um latino-americano justifique o crime internacional cometido pelo governo de Uribe na semana passada – Raúl Reyes era a figura designada pelas Farc para a negociação de paz que, como sabemos, já envolveu outros governos da região. Será que é muito difícil perceber que o assassinato de Reyes tem muito pouco a ver com o combate ao "terrorismo" e tudo a ver com impedir que Hugo Chávez capitalize politicamente com a negociação para a libertação de reféns? Por que o jornal O Globo, em editorial, se refere como “base” a um acampamento de onde jamais havia saído nenhuma operação militar? Ah, como seria bom se existisse uma direita nacionalista no Brasil! Não se pode brincar com o respeito às fronteiras nacionais logo ali na Amazônia, numa época em que o governo Bush já deu amplas demonstrações de que não respeita direito internacional nenhum.
Nenhum comentário:
Postar um comentário