Quão universais são os direitos universais? Colocar a pergunta dessa forma já trai uma resposta. Mas talvez seja melhor começar pelo começo.
Esta coluna tem por objeto a reportagem da Folha publicada no domingo sobre o infanticídio entre grupos indígenas. Alguns de nossos "bons selvagens", como se sabe, costumam matar logo que nascem gêmeos, filhos de mães solteiras e portadores de outras "maldições". A prática é comum em pelo menos 20 das mais de 200 etnias que vivem no país. Com o apoio de ONGs de direitos humanos, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que pretende coibir "práticas tradicionais que atentem contra a vida".
Pela proposta, "qualquer pessoa" que tenha conhecimento de casos de uma criança em situação de risco e deixe de informá-lo às autoridades responderá por crime de omissão de socorro.
É bem verdade que a pena sugerida é quase simbólica: vai de um a seis meses de detenção ou multa. O projeto, entretanto, me parece um equívoco.
Calma, ainda não me tornei um relativista feroz. Longe de mim defender o infanticídio, em especial nas condições em que os índios o praticam. Sou pai de gêmeos e posso asseverar que, embora endiabrados, filhos que nascem aos pares não chegam a constituir uma maldição.
Tampouco o são aqueles cujas genitoras não sejam casadas. Até concordaria com o "saber dos povos da floresta" no caso de algumas moléstias congênitas muito graves, mas não creio que a maioria das tribos já tenha chegado a tal requinte de diagnóstico.
No mais, não me incluo entre os que colocam no mesmo plano a civilização ocidental e a cultura dos pirahãs, por exemplo. Enquanto esses índios mal contam até quatro, nós desenvolvemos o cálculo infinitesimal e com ele mandamos o homem à lua (e trouxemos de volta, o que é mais importante). Tampouco renunciei à idéia de que existe um núcleo de direitos fundamentais que devemos procurar estender a toda humanidade. Evidentemente, o respeito à vida e a integridade das crianças faz parte desse conjunto.
Minha discordância em relação ao projeto de lei diz respeito aos métodos. Não creio que a melhor maneira de combater o infanticídio entre índios não-aculturados seja criminalizá-lo. Se tornar determinadas práticas ilegais bastasse para coibi-las, não conviveríamos com epidemias de uso de drogas - e experimentos como a Lei Seca teriam sido um sucesso.
Paralelamente, é preciso um cuidado especial quando estamos lidando com culturas mais primitivas que a nossa. No afã de ajudá-los e civilizá-los, podemos acabar produzindo verdadeiros desastres, talvez até piores do que o mal que pretendíamos evitar. Já desenvolvi esse tema na coluna "Os índios, a felicidade e a caverna", de modo que me permito, aqui, passar ao largo da questão.
O melhor caminho, acredito, é tentar mostrar, pela via do convencimento e não a da coerção, que gêmeos, filhos de mães solteiras e portadores de deficiências não são uma "maldição". Quanto mais isolados forem os índios, mais cuidado precisamos ter.
O que pretendo examinar melhor nas linhas restantes é a aparente contradição entre a idéia de direitos universais e a tolerância para com tradições que supostamente os violem.
Fazendo um pouco o papel de advogado do diabo, quer dizer, dos índios, o infanticídio de recém-nascidos não é senão um caso extremo de aborto tardio. E mais ou menos a metade do Ocidente acredita que o aborto é um direito da mulher. Nos países onde a interrupção da gravidez é lícita, ninguém exige da ex-futura mamãe que justifique a razão pela qual optou pelo procedimento. Se ela quiser, pode descartar o embrião por motivos ainda mais etéreos que a "maldição" dos índios.
Esse "insight" já basta para deslocarmos o busílis. O problema, como sempre, é de interpretação. Acho que ninguém, aí incluídos eu, os índios, o papa e Gêngis Khan, discorda de que a vida deve ser preservada. A questão é, como sempre, estabelecer as situações em que a regra vigora e aquelas em que não vale.
Não existem sociedades para a morte. Mesmo regimes assassinos como o Terceiro Reich cuidavam de excluir judeus e ciganos, suas vítimas preferenciais, do rol da humanidade. Eles eram "sub-raças". Eliminá-los, portanto, não era mais grave do que abater um animal.
Cláusulas de exclusão não são privativas de tiranias. Mesmo a mais abertas das sociedades estabelece condições nas quais é lícito, senão desejável, matar outros seres humanos. Tais situações vão desde a legítima defesa até o estrito cumprimento do dever, passando pelo estado de necessidade. Um caso particularmente chocante é o da guerra. Não apenas aceitamos que nossos jovens eliminem "inocentes" - o soldado inimigo, até onde se sabe, não cometeu nenhum crime -, como ainda damos medalhas para aqueles que se revelarem homicidas mais competentes.
Daí que mesmo direitos "universais", como os que constam da declaração de 1948, são de algum modo "relativos". Tanto é assim que a declaração foi aprovada na Assembléia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948 pelo placar de 48 a zero com oito abstenções. Nem mesmo a União Soviética de Stálin julgou que era o caso de votar contra o documento. Em sua interpretação, eventuais descumprimentos da letra da Declaração estavam sempre justificados por cláusulas de exceção. Isso prossegue até hoje. Não deixamos de prender criminosos condenados porque o artigo 3º do texto reza: "Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal". Anunciados em tal grau de generalidade, princípios não ameaçam ninguém. Os problemas só surgem quando se detalham as exceções.
Tal análise, reconheço, é quase um convite ao cinismo. Receio, porém, que não haja outro caminho. Não podemos erigir absolutos, nem para a lei nem para o pensamento, sem escancarar as portas para os piores fanatismos.
Se o direito à vida desde a concepção é sempre e em todo caso inegociável, como sustentam alguns grupos religiosos, torna-se lícito e até virtuosos assassinar médicos que praticam o aborto. Na mente do zeloso ativista, o paradoxo nem se coloca. Houve casos assim nos EUA. É a lógica dos homens-bomba. Suas conseqüências são tanto mais funestas quanto mais acreditamos que ela esteja a serviço da verdade e do bem.
Hélio Schwartsman, na Folha Online.
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11.4.08
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